Quase sem querer
Está
escuro e o fusca segue, estamos em cinco, outros dois e eu no banco de trás, e
tem som, se de fita k-7 ou rádio?, canções enfim, uma após a outra, e risadas.
A rodovia dá acesso à cidade onde ainda moro, e de onde vou partir em alguns
anos, e é pra lá, para aquele endereço que o carro está indo.
Tem
gasolina suficiente, não há obstáculos na pista e o então amigo, que nos
próximos anos vai desaparecer de minha vida, consegue dirigir apesar das
cervejas que bebeu – no futuro, se tivesse uma blitz, ele seria preso por
embriaguez e nós, os quatro passageiros, possivelmente também iríamos para a
delegacia se no caminho tivesse uma batida policial.
Mas
não teve blitz.
O
problema, eu não poderia prever, veio por trás.
Luzes
em meio à escuridão acima do fusca. E, em seguida, estouros.
Não
eram rojões, e sim tiros, disparos de armas de fogo efetuadas possivelmente por
pessoas dentro de carros que, percebi apenas após a sequência de luz e som,
enfim, dois ou três carros, não sei quantos ao certo, nos perseguiam.
A
tensão já passou, aquele evento teve um final, se não feliz, ao menos não
trágico.
Mas,
enfim, naquela madrugada eu e os outros então amigos nos olhamos, por segundos,
todos estávamos com medo, e o temor era o de perder a vida.
O
fusca a mais de oitenta quilômetros por hora, quando um dos carros de onde
saíam tiros nos ultrapassou.
Se o
motorista daquele carro desse um cavalo de pau, trancando a pista, e os
desconhecidos saíssem do carro atirando em nossa direção, poderia ter
acontecido um evento irreversível.
Mas o
automóvel nos ultrapassou e desapareceu, deve ter atingido mais de cem, cento e
vinte ou cento e trinta quilômetros por hora – talvez a ideia daquele motorista
tenha sido nos desafiar para um racha, não sei, nunca entendi.
Outros
carros, os que estavam atrás, deixaram de nos perseguir. Algo, que não sei o
que foi, aconteceu. Talvez os disparos contra o fusca tenham sido provas de
virilidade suficientes para os desconhecidos que nos hostilizaram.
Há
quantos tempo não lembrava da cena?
Também
esqueci o nome daqueles amigos com quem eu estava dentro do fusca quase
perfurado por balas em uma madrugada.
Nem
lembro como nem por meio de quem soube que aqueles desconhecidos que atiraram
contra o fusca eram namorados, antigos ou futuros amantes daquelas lindas e
desconhecidas mulheres com quem eu e meus quatro então amigos flertamos.
Também
soube que, naquele contexto, os quatro amigos e eu não poderíamos pisar outra
vez naquela cidade onde entramos em um clube no fim de um sábado.
Já
passaram das quatro e meia, e andar pelas ruas neste horário é um dos poucos
hábitos imutáveis. Nem a chuva me impede.
Um,
dois, três quatro moradores de rua acordados, alguns me cumprimentam, a maioria
dorme, e eles ocupam quase todas as calçadas.
Dois
carros, uma moto. O ônibus. E só. É possível caminhar no asfalto.
Nenhuma
estrada me levou outra vez até aquela cidade, onde, quatro então amigos e eu
bebemos, dançamos e, sem saber, transgredimos.
Ali,
a poucos passos, tinha um restaurante, hoje é farmácia, e há décadas, eu soube,
o espaço também foi depósito de armas e sapataria.
A
porta por onde eu passava, quando era cliente do restaurante, foi fechada com
cimento. Hoje o acesso à farmácia é na rua lateral, mas não desejo entrar nesse
ou em outros espaços fechados.
Daqui a alguns instantes devem surgir os tons da manhã, a madrugada já acabou – e, com a sensação de não conhecer mais o trajeto, estou indo de volta pra casa com a melodia de uma canção da qual não lembro o nome, mas sei cantarolar, mesmo desafinado e fora do ritmo, sim, eu sei.
Meu conto publicado em novembro de 2020 na Revista Ideias com ilustração do Vitor Mann.
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