Anão de três pernas

 

Quando surge, o anão de três pernas até parece interessante, mas em seguida torna-se insustentável. Ou a palavra seria insuportável? Não lembro, nem mesmo quem pela primeira vez me falou sobre o impacto do anão de três pernas – talvez tenha sido aquele poeta, o que viajou há quase vinte anos.

 

O poeta, sim, ele falava sobre o impacto de um anão de três pernas, que não precisa ser anão nem ter três pernas. Anão de três pernas, aquele poeta repetia, representa algo exótico, inédito no contexto. Um texto literário, por exemplo, radicalmente experimental, sem enredo, apresentado em meio a narrativas aparentemente convencionais – convencionais mas com linguagem, potentes.

 

Em meio a potentes narrativas consideradas convencionais, o texto experimental (sem enredo), enfatizava aquele poeta, poderia se destacar conquistando aplausos, prêmios, tantos troféus. Até tendência, veja só, o diferente estabeleceria. Mas, o poeta não deixava de advertir, uma vez conhecido, talvez copiado e com divulgação, o texto anteriormente peculiar passaria a provocar bocejos, cansaço e repúdio.

 

Bocejos, cansaço e repúdio. Eis o efeito, de acordo com o poeta, da presença do anão de três pernas, que, é importante repetir, não é necessariamente anão nem possui três pernas. Como já foi enfatizado, em meio a narrativas consideradas convencionais, porém sublimes, anão de três pernas é aquele texto experimental, sem enredo. Mas o anão de três pernas também pode ser o contador de piadas sem humor, racista, preconceituoso, prepotente. Ou um sabichão. Até mesmo um dublê do Yngwie Malmsteen. Uma ditadora. Ou o oposto do meu amigo poeta: um piegas que apresenta prosa quebrada como se fosse poesia.

 

Depois da breve visibilidade, os anões de três pernas – de acordo com o poeta – são transferidos para uma ilha no hemisfério sul sem conexão com o planeta. Seguem dentro de navios rumo ao endereço não divulgado, onde não há pretérito, presente e futuro, nem manhã, tarde e noite.

 

Lá, os anões de três pernas não são julgados, há grata aceitação de suas idiossincrasias e eles atingem algum equilíbrio apesar das três pernas, experimentando sem dor tudo o que pode fluir entre sólido, líquido e gasoso nos reinos animal, vegetal e mineral por meio de nuances das primárias cores amarelo, azul e vermelho.

 

Desconfio que o poeta entrou clandestinamente em um dos navios de rota sem rastros e viajou para a ilha, apesar de não ser um anão de três pernas. Antes de desaparecer, dizia estar cansado de eternas repetições, pessoas e confrontos desnecessários, não por ausência de coragem, mas por aborrecimento com quase tudo e todos.

 

O poeta, não tenho certeza, é apenas hipótese, ele não teria satisfação em conviver com o autor ou autora daquele texto experimental, sem enredo, nem com contadores de piadas sem humor, sabichões, dublês do Yngwie Malmsteen, ditadoras, piegas que apresentam prosa quebrada como se fosse poesia e outras possibilidades de anões de três pernas. Mas, como repetiu mais de duas e menos de quatro vezes, o poeta flertava com a possibilidade de viver onde o número 3 manifesta toda a sua potência, como as trindades e a máxima: “o que é feito três vezes se torna lei.”

 

Três desejos, três chances, a terceira margem do rio: o poeta apareceu em um sonho e me ditou uma, duas, três vezes este texto. E então sumiu para todo o sempre, para nunca mais.

 

Meu conto publicado em outubro de 2020 na Revista Ideias com ilustração do Vitor Mann.

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