Uma jornada particular

Found my way upstairs and had a smoke,/ and somebody spoke and I went into a dream.” Trecho da canção “A day in the life”, de John Lennon e Paul McCartney, do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band.


As minhas mãos tremem, não tenho controle, onde estou? Não dá para voltar à noite anterior. Ou dá? Que rua é essa? Estava tudo certo, o plano era infalível, pela primeira vez na vida eu mudaria de casta, eu estava quase lá, a bola rolava, faltavam poucos segundos para gritar gol, tudo dando certo, como nunca até então, mas, daí.

Olho para as minhas mãos, olhe aqui. Tudo treme. Há pouco eu caminhava pela cozinha, eu, que sempre fico sentado e me demoro à mesa, seguia de um lado para o outro, lavava um copo, seguia para o quarto, o que acontece? Esses seis números. Será? O concurso é o 1377. 8, 15, 26, 41, 48 e 52. É isso? Vou olhar de novo. E mais uma vez. Sim. É o concurso 1377 da Mega-Sena, e os números são o 8, o 15, o 26, o 41, o 48 e o 52.

Agora a casa está vazia. Estou aqui, aqui mesmo? Sigo neste quarto a olhar pela janela – olhe, não há ninguém na rua. Onde estão todos? Vou conferir que dia é hoje. Onde estão os calendários?

Preciso sair, olho pela janela e não vejo nada. Não enxergo ninguém, mas parece que tem gente a me vigiar. Será? O que fiz? O que aconteceu? Por que estou com medo?

Tem sol, mas tenho de usar roupas, calças, meias, camisas, botas, casacos, há um frio que me intimida. Não quero sair do quarto, sinto medo, de ser capturado, de sequestro, de violência física. O que fiz? Que eu lembre, no máximo, disse ou escrevi algumas palavras – mas as palavras não têm mais valor neste mundo, quem liga ou se importa com o que se fala e escreve?

Há inimigos, mas não sei onde eles estão e por isso vou me esconder dentro de uma sala de cinema, dessa, aqui. Já entrei, nem vi o título do filme, e não faz diferença, um enredo qualquer pode me distrair. Olhe só, já apagaram as luzes, tem uma poltrona livre ali, com licença, obrigado, claro, já vou sentar. Agora sim, estou a salvo, de mim, do mundo.

A vida de Max Bell.

O que é isso?

Max Bell, que acabou de entrar nesta sala e se sentou na última poltrona vaga, foi um péssimo sujeito, mau caráter, incapaz de estabelecer e manter um relacionamento...

O que é isso? Você ouviu? Alguém está brincando comigo? É pegadinha?

Max, não precisa se incomodar. Ninguém, muito menos eu, está te julgando...

E agora? A voz do narrador do filme fala comigo?

Max Bell invejou, foi guloso, cobiçou e possuiu a mulher do próximo, furtou, cometeu crimes e negou, assassinou, forjou provas e um inocente foi condenado em seu lugar...

Já estou fora da sala de cinema – o que foi aquilo? Não entendi. Um filme sobre a minha vida? E o narrador ainda conversava comigo?

Por que eu não paro de tremer? E isso, você viu? Um homem, agora, quase passou por cima de mim. E aquela mulher, ali, também veio em minha direção.

Sinto vontade de fumar, mas eu parei, ou não parei? Há quanto tempo não sei qual é o gosto daquele hábito de acender o cigarro, tragar, segurar e soltar a fumaça? A minha vida por um cigarro, todo o dinheiro que ganhei sozinho na Mega-Sena por um cigarro – claro que não, vou pagar apenas o preço que vale uma carteira, mas onde eu encontro cigarros agora?

[açúcar, ameixa, biscoito].

Que mundo é esse? Será que terei a Isis Valverde, a Natalie Portman, a Paolla Oliveira, a Gal Gadot que eu quero, na cama que escolherei?

[açúcar, ameixa, biscoito].

Quero já, agora, tudo o que tenho direito. Quero sim a existência como uma ventura de modo inconsequente, não – essas ideias são de outras pessoas, e aquilo ali, um jornal colado em um poste com a minha foto?

Max Bell foi um dos sujeitos mais solitários e sozinhos que passou pela Terra. Desde pequeno, viveu dentro de uma bolha de isolamento, e nunca fez esforço para sair de onde estava. Max Bell pulou de bolha em bolha, saiu de um grupo em direção a outro, continuamente, sempre destruiu pontes para não retornar ao passado – ele renegou tudo, mas...

O que é isso? Primeiro no cinema, agora é um jornal falando da minha vida?

Caminho e está tudo irreconhecível, sinto vontade de fumar, onde consigo um cigarro? E essas pessoas que passam e parecem não me enxergar? Que as mulheres não olhem para mim não é novidade, mas estou reparando em uma outra coisa, ninguém, absolutamente ninguém demonstra notar a minha presença, a não ser cães e gatos.

Será que isso é efeito do prêmio da Mega-Sena? Até ontem ou antes de ontem eu era invisível por ter de trabalhar quase o tempo todo para pagar o preço-vida e agora que ganhei tantos milhões também não olham para mim?

[açúcar, ameixa, biscoito].

Há outro jornal logo ali, vou conferir para ver se, não, já folhei algumas páginas, será?, não, não citam meu nome, avanço por mais páginas, agora os classificados, nada, nenhuma mensagem direta ou cifrada. O que é isso? A esperada declaração de um líder é uma negativa, ele nega que fez, antecipa-se anunciando que não fará – e o grande jogo de futebol programado para amanhã dará empate, garantem os comentaristas, e o álbum de minha banda favorita não é grande coisa, afirmam os que escrevem no caderno de cultura, e os críticos literários decretam que a literatura nunca passou por uma fase tão ruim como a do tempo presente, e os que assinam resenhas sobre cinema dão notas para os filmes; chega, não preciso disso, de nenhuma dessas informações.

Caminho e a cada passo sinto mais vontade de fumar e esse desejo aumenta e tenho certeza de que preciso de um cigarro, agora, é o meu organismo que exige cigarro, mais importante neste momento do que água ou qualquer alimento, e então vejo, na calçada, uma carteira de cigarros e um isqueiro, me abaixo, pego a carteira, tiro um cigarro, que acendo com o isqueiro e era isso o que eu precisava, esse cigarro – surge um ônibus que para, eu subo as escadas e entro no veículo coletivo com o cigarro aceso.

Chove dentro desse ônibus, e apenas aqui. Fora, vejo pela janela, há sol e céu azul. Aqui, no corredor, algumas pessoas usam guarda-chuva, outras, capas de chuva, apenas eu estou sem proteção contra a chuva, vestindo um terno que nem sabia que tinha e, percebo, após olhar para os lados e me apalpar, essa chuva não me molha, é uma chuva seca.

– Oi.

– Oi.

– Eu sou a Lúcia. E você?

– Max Bell. Sou o Max Bell.

– Muito prazer, Max Bell.

– Prazer, Lúcia.

– Me tira pra dançar?

– Dançar?

– Sim.

– Aqui dentro? No ônibus?

– Qual o problema, Max Bell?

– Mas está chovendo.

– E daí?

– É um pouco...

– Meus olhos são de caleidoscópio.

– O quê?

– O sol está nos meus olhos.

– O sol?

– Max Bell, olhe para o cobrador e para o motorista.

– O que eles têm?

– As gravatas deles são de espelho.

– O quê?

– Não vejo você refletido ali.

Já estou fora do ônibus, não lembro de que maneira saí, e também não entendo o que está acontecendo desde o início da manhã. Acordei e as minhas mãos estavam, e continuam, a tremer, o que passa?

“Diversão é a única coisa que o dinheiro não consegue comprar.”

Quem disse isso? Caminho em uma rua e não vejo ninguém, apenas escuto essa voz, mas não concordo com essa ideia de que diversão é a única coisa que o dinheiro não consegue comprar. O dinheiro só não compra a poção para manter ou recuperar a juventude, ou compra? – vou saber daqui a pouco, quando apresentar o meu bilhete premiado da Mega-Sena em uma agência bancária.

As luzes dos apartamentos e dos postes estão acesas, mas os restaurantes, as farmácias, as padarias e os bares desligaram as lâmpadas e fecharam as portas, e ainda não são nem vinte horas. A cidade está vazia.

Hoje tudo escapou do meu controle, apesar de eu nunca ter controlado nada, mas, e isso é o que importa, hoje não trabalhei. Faz tempo que desejo apenas passear. Se teve algo que eu quis, desde muito, foi o não fazer nada, apenas vagar, sem preocupação. Durante anos não consegui dormir – eu acordava por ter esquecido algum compromisso. Nos pesadelos eu era repreendido por um sujeito chamado senhor Kite, eu não o conhecia, apenas escutava o senhor Kite dizer que havia um erro no trabalho que consumiu todo um ano. Eu acordava, permanecia por alguns minutos de olhos abertos a lembrar do que teria de fazer no escritório e voltava a sonhar e a encontrar o senhor Kite.

Essa é a primeira vez que caminho sem me preocupar com dinheiro, mas onde estão as pessoas?, será que teve toque de recolher e não fui avisado?, ou é a final da copa do mundo?, aconteceu vazamento de alguma substância tóxica? Sinto frio, mas não é algo que me incomode, o que me incomoda é esse vazio nas ruas, na cidade.

Já não sinto mais o chão, deve ser o cansaço, mas minhas pernas seguem e me movem. Tudo tremia e agora não há mais tremor, o escuro é total e lembro de uma madrugada, quando havia dívidas, credores por toda parte e nenhuma perspectiva nem dinheiro. Insone, levantei e pela janela do sétimo andar vi a Alice Braga a dançar no asfalto – tive a impressão que ela cantava “Nightwalker”, do Thiago Pethit, e flutuei a tropeçar nos astros desastrado com oxigênio suficiente para outros futuros. Mas aqui não há som e não enxergo mais nada, nem a rua, nem meu corpo – onde deixei o bilhete da Mega-Sena? – não sinto fome, apesar de me imaginar comendo açúcar, ameixa, biscoito, açúcar ameixa, biscoito, açúcar, ameixa, biscoit...


Conto encomendado para a coletânea O livro branco (Record, 2012), organizada por Henrique Rodrigues. Posteriormente a narrativa foi incluída em meu terceiro livro de contos, 2,99 (Tulipas Negras, 2014). 

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