Cheio de verão no vazio

Terça, 3: Iria anotar, fui ao banheiro e esqueci. O que era? Sobre o quê? Entrei nas redes sociais e gastei um dos dias deste verão. Dormi às 23 horas sem escovar os dentes.
Quinta, 5: Os mais de trinta graus, não tenho certeza, apenas desconfio, me deixaram tonto – um comprimido a mais e ainda não acertei a medicação.
Sexta, 6: Contas atrasadas e mensagens de interrupção de serviço me obrigaram a caminhar até o banco e no trajeto quase caí. Na volta estava menos tonto, mas ainda com medo. O temor é cair na rua e não receber ajuda.
Sábado, 7: Três comprimidos e apesar deles desequilíbrio até o início do domingo. Saí da cama para ir ao banheiro e mastigar bolachas. Vi dois ou três filmes na Netflix.
Domingo, 8: Duas garrafas de tinto seco e ausência de tontura- vertigem. E ainda: macarrão instantâneo, dois álbuns do Zeca Baleiro, Em noite de climão, da Letrux, e três comprimidos.
Terça, 10: Sem equilibro para caminhar vou de táxi ao hospital. A médica recomenda aumentar a dose do remédio. Não conto que bebo continuamente há mais de quarenta dias.
Quinta, 12: Sonhei com a Ana Cañas.
Sexta, 13: Reservei a data para o meu único dia de praia neste ano. A previsão indicava sol, mas nublou. E foi excelente. Seis, sete horas de banho de mar.
Sábado, 14: Centenas de pessoas na rua projetada para dezenas de pedestres. Alguém fantasiado de O Máskara, do filme de 1994 com o Jim Carrey, quase é atropelado ao tentar seguir entre os carros. Homem-Aranha tira espada de sua mochila e assusta quem passa. Duas cenas em menos de sete minutos, tempo para um casal encontrar o filho, talvez de quatro anos, que desapareceu durante o jantar no restaurante em que pela primeira vez provei macarrão com cream cheese.
Segunda, 16: A tontura me abandonou ou a esqueci?
Quinta, 19: Em quase todas as madrugadas, incluindo a mais recente, meu sonho tem a Ana Cañas cantando “Declaro My Love”. Ela interpreta a balada para horizontes que desconheço, grita, blues e esperança, mas quando abro os olhos, dentro do sonho, parece que estou diante de outra artista. Mariana Aydar não, Duda Beat?, quem seria?, Karina Buhr ou Céu? Não, a Ana Cañas não é a protagonista dessas travessias oníricas, e sim a Monique Cohen, que ensaia no quarto as suas canções autorais tão arrebatadoras como “Declaro My Love”.
Sexta, 20: O verão já era.
Sábado, 21: Não sinto tontura faz dias.
Segunda, 23: Há uma semana o remédio acabou e decidi suspender a medicação.
Quarta, 25: Parece que uma conhecida do Face me cancelou. Deixei de ver as postagens dela, especialmente ela que posta mais de dez vezes todo dia. Conferi e, de fato, não somos mais amigos. Mas nunca fomos amigos, nem no Facebook.
Terça, 31: Menos de dez graus me fazem feliz, não sinto necessidade de beber, nem água, e preciso ouvir a Marina Lima cantar com aquela sublime rouquidão sobre abismos e os que perderam veredas e ainda assim caminham.



Minha narrativa publicada na edição 221, março de 2020, da Ideias, com ilustração do Vitor Mann. Linque pra Ideias.

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