Subúrbios


O carro para, o sinal está fechado e Sônia observa um ônibus da linha Algum tempo depois na praça Mez da grippe. Usou a linha por anos, mas o ponto final era na avenida Newton Sampaio. Hoje Sônia é uma historiadora reconhecida, tem livros publicados, espaço na imprensa, emprego na universidade e vaga no instituto de história. Mas uma parte de sua vida teve como cenário o interior de ônibus que a conduziam até os subúrbios onde nasceu e morou.

O carro segue, o motorista, Roberto, pergunta se é para voltar pra casa, Luciano, sentado no banco de trás, ao lado de Sônia, quer saber se a namorada está bem, ela diz que sim e, dirigindo-se a Roberto, comenta que gostaria de jantar no restaurante Capitu Sou Eu.

Luciano pergunta se ela gostou da peça, Sônia balança a cabeça, fala que a encenação foi excelente e abraça o namorado. Ao ver um ônibus da linha Algum tempo depois lembrou que durante alguns anos, após ir ao teatro ou a uma palestra, era necessário – em algumas situações – correr até o ponto.

Perder o último ônibus significava esperar cinco, seis horas até o dia seguinte. Geralmente esperava o próximo ônibus parada no ponto final. Há duas décadas não havia tantos criminosos como os que hoje circulam pela cidade, mas Sônia sentia medo ao atravessar madrugadas sozinha ou na companhia silenciosa de conhecidos e desconhecidos do subúrbio.

A então estudante de história era uma das primeiras a sair do bar, raramente ficou em espetáculos até o momento dos aplausos e foram raras as palestras que assistiu até o fim. Também tinha que deixar a universidade antes do final das últimas aulas e reprovou por faltas em algumas matérias.

Sônia sabe, e tinha consciência no período da faculdade, que a sua formação foi, e ainda é, um tanto precária devido aos movimentos que fez para não perder o último ônibus.

O carro para em frente ao restaurante Capitu Sou Eu, Luciano sai, abre a porta para Sônia descer, o namorado fecha a porta e Roberto segue com o veículo até o estacionamento. O casal anda de mãos dadas até a porta do Capitu Sou Eu. Cumprimentam um funcionário e, acompanhados de um garçom, vão até uma mesa, a mesma que ocupam quando frequentam o local.

Sônia não usa relógio, o visor do celular já informa sobre a passagem do tempo e, faz alguns anos, geralmente é uma das últimas pessoas a sair de um evento, até mesmo do avião. Diz para si mesma, e para conhecidos, que não tem mais pressa para nada e, lentamente, passa os olhos no cardápio sem conferir nenhum item. Sabe o que vai pedir: o prato O pássaro de cinco asas. Não confere o valor, nem o preço do vinho australiano sugerido pelo namorado.

A historiadora coloca o cardápio em cima da mesa e observa o namorado realizar o ritual de aprovação do vinho. O garçom mostra o rótulo, tira a cápsula de plástico e, em seguida, a rolha, despeja alguns mls dentro do cálice destinado ao atual namorado de Sônia, ele balança o cálice, cheira o vinho, ingere os mls, retém o líquido na boca, hesita durante alguns segundos e, então, balança a cabeça afirmativamente – o que autoriza o garçom a despejar mls no cálice que Sônia vai usar e, também, no cálice que Luciano já utilizou.

Sônia bebe um gole e, pela primeira vez, compara o ritual de aprovação do vinho ao seu processo de elaboração de um texto para jornal, revista, livro ou discurso. Antes de escrever, ela também segue uma espécie de rito. Seleciona citações, principalmente de autores de outros países, para apresentar a frase no idioma original, o que tende a impressionar alguns colegas e leitores. Consulta livros de vozes consagradas em busca de fragmentos, os quais reescreve, nem sempre fazendo referência à fonte. Isso faz com que o seu discurso encontre ressonância, uma vez que o público para o qual se dirige já conhece o conteúdo. 

Aprendeu com um professor, de quem tornou-se amante por uma temporada, que é fundamental usar lugares-comuns e jamais, nem em pensamento, elaborar um ponto de vista original.

O mestre-amante também ensinou e ela aprendeu: se não estiver segura sobre o assunto, elabore frases truncadas, as quais o leitor não vai entender nem questionar – o seu restrito público, de modo geral, aplaude até aquilo que não sabe o que é.

Sônia e Luciano seguem em silêncio, já provaram e aprovaram o prato O pássaro de cinco asas, que harmoniza frango, caponata de berinjela e massa ao ponto. Ao mastigar lentamente, em meio a alguns goles de vinho, a historiadora lembra que seu antigo professor e amante, o Armando, recomendou insistentemente que, se ela quisesse triunfar no meio acadêmico, e na sociedade, não deveria – jamais – apontar equívocos ou eventuais plágios alheios.

Luciano pergunta se está tudo bem, Sônia diz que sim e bebe mais um gole de vinho, o namorado quer saber se ela está incomodada com a bolsa de estudos, a historiadora comenta que não, fala que está tudo certo e bebe outra dose de vinho, ele estende a mão direita e toca em uma das mãos dela.

Sônia bebe água e lembra que precisa decidir se aceita, ou não, uma bolsa para fazer um curso de pós-doutorado. Está indecisa porque o professor Ramon, o sujeito que seleciona, e aprova, os projetos já sugeriu, mais de uma vez, que ela deveria realizar um estudo dos subúrbios locais, endereços onde a historiadora morou e que ela não gostaria de revisitar, nem em pensamento, muito menos colocar em evidência por meio de um trabalho acadêmico.

Um garçom traz a sobremesa, um petit gateau batizado Novelas nada exemplares. Sônia prova, fecha e abre os olhos, bebe um gole de água e fecha outra vez os olhos. Gostaria de dizer, para o Luciano, que o pós-doutorado pode fazer com que ela se diferencie de colegas da universidade e do instituto de história.

Mas, devido a experiências anteriores, Sônia evita desabafar e compartilhar dúvidas com Luciano. O Ronaldo, que acaba de entrar no Capitu Sou Eu, é um publicitário com quem teve um relacionamento. Outro ex da historiadora está no restaurante desde que ela chegou. É o Bernardo, um economista.

Sônia desabafava e dividia angústias com Ronaldo, Bernardo e praticamente todos os homens com quem se relacionou. Mas eles, em sua maioria ambiciosos, não davam a atenção necessária ou atrapalhavam os projetos da historiadora. Ao invés de companheiros, encontrou rivais.

Por isso conversa com Luciano, que é personal trainer, apenas sobre amenidades, o que, para ela, é suficiente. Eles transam bem, muito bem e daqui a pouco, se não houver imprevisto, devem transar – pelo menos essa é a expectativa da historiadora.

Com um dos cartões de Sônia, Luciano paga a conta e o casal sai discreta e rapidamente do Capitu Sou Eu. O motorista, Roberto, pergunta se eles vão pra casa, Sônia diz que gostaria de passear pelo centro. Antes de consultar o namorado, se ele não se importaria com esse passeio, Luciano sorri e concorda, balançando a cabeça afirmativamente.

Luciano toca em uma das mãos de Sônia, que deixa sua mão se entrelaçar com a do namorado por alguns segundos e, em seguida, ela se afasta. O carro segue pelo centro e Luciano sabe que a namorada precisa ficar em silêncio.

Sônia aparentemente está com o olhar direcionado para a paisagem, mas não presta atenção em nada. Planeja o seu pós-doutorado. A estratégia da historiadora é citar exaustivamente outros estudos a respeito de subúrbios – subúrbios, em sua opinião, mais cosmopolitas. Assim, tira o foco dos subúrbios locais e pode alegar que seu ponto de vista é complexo, amplo e, portanto, não provinciano.

O sorriso de Sônia sinaliza, para Luciano, que a partir de agora ele pode se aproximar da namorada. Ele estende uma das mãos e ela retribui o gesto. Seguem de mãos dadas em silêncio, nem o motor do carro faz barulho, e Sônia relaxa. A digestão se processa, ela tem confiança em seu plano para o pós-doutorado. Roberto, o motorista, entra em uma rua onde ela não passava desde o período em que pretende esquecer, mas que vai revisitar em breve – na estação que se anuncia com eventuais adversidades, mas também com novas leituras, movimentos, contatos e quem sabe até um novo namorado – ela ainda se satisfaz com Luciano, mas, sabe, isso também vai passar.


Conto publicado em A cor do presente (Tulipas Negras, 2019), o meu oitavo livro de narrativas.

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