O voo de Ryouji


Fecho, abro, fecho e abro outra vez os olhos e realmente estou mesmo aqui. No palco, uma das bandas de que mais gosto toca uma de minhas canções favoritas. Uma balada sobre um relacionamento que não deu certo. É melancólica, os acordes devem ser menores – ouvi falar sobre isso quando fiz aulas de violão. Um dos professores disse que os acordes menores produzem sonoridade triste por causa da terça menor. Não aprendi a tocar, nem acordes menores, nem os maiores, que, ao contrário daqueles, sugerem alegria devido ao uso da terça maior. Mas, como ia dizendo, ou pensando, estar nesse show é quase um sonho realizado, não fosse por um único detalhe.

Estou sozinho.

Pela primeira vez em muito tempo sigo sem companhia, seja de uma Fulana, de outra Beltrana ou de uma Sicrana qualquer. E sozinho não sei o que fazer com as mãos. Elas estão nos bolsos da calça. Tiro uma, depois a outra, olho para os lados e as mãos voltam para os bolsos. Se eu fumasse, ao menos uma das mãos teria utilidade num momento como esse. Mas já faz algum tempo é proibido fumar em ambientes fechados, e além disso eu não fumo, nunca fumei.

Beber eu bebo e isso também resolve, pelo menos por alguns momentos, o problema de onde colocar as mãos. Mas estou quase em frente ao palco e, se eu bebesse, mesmo poucas doses, seria necessário ir ao banheiro e possivelmente não conseguiria voltar para este exato local.

Estou aqui e parece mesmo que isso, esse show, ver a banda e ouvir a canção é uma experiência interessante, mas sinto desconforto. Não apenas por estar sozinho, mas está desconfortável porque olho para os lados, para trás, para frente, pra cima e não conheço ninguém. Tem gente de uma ou duas gerações mais novas.

Outro dia, ao cortar o cabelo, não pensava em nada até perceber no chão, embaixo da cadeira, fios brancos.

Talvez ninguém perceba os meus cabelos brancos, está escuro aqui. Será que percebem a minha presença? Mas, nem sei, não saberia o que dizer, o que comentar, se me aproximasse de alguém.

Tudo ou quase tudo mudou depois do acidente.

Soube que a Fulana ficou chateada comigo por eu ter estragado o começo das férias. Eu não tinha dito a ela que precisava resolver um problema no apartamento da praia. Antes do meio-dia do sábado, um conhecido telefonou pra Fulana contando que me acidentei dirigindo na rodovia que dá acesso ao litoral. Meu carro estava a mais de cem quilômetros por hora, bem mais, quando surgiu um caminhão.

Hoje é a minha primeira, talvez a segunda noite de volta à vida. Agora é o momento em que a música se modifica: o refrão traz palavras e uma sugestão, por meio da melodia, de otimismo e esperança no futuro. Gostaria de sentir isso, mas nem sei mais o que estou sentindo.

O relacionamento com a Fulana já estava desgastado há alguns anos e acabou, de vez, durante a minha temporada no hospital. Foi ruim, eu chorava quase o dia inteiro, mas a dor que eu sentia, percebi depois, era física, por causa da perna quebrada e de outras fraturas.

O doutor Rafael conversou quase todos os dias comigo. Tive a impressão de que ele estava querendo me entrevistar. O Rafa, meu conhecido desde a infância, sabe que já fui hospitalizado por causa do consumo exagerado de bebida alcoólica e sofri traumatismo craniano durante uma briga. Em um dos encontros no quarto do hospital, não sei por que me pareceu que ele disse, de maneira indireta, que tentei me matar na rodovia.

A Beltrana comentava que me tornei bem-sucedido financeiramente porque sou suicida. A Sicrana não se cansava de falar que vou pro tudo ou nada o tempo todo. Outra Belbetrana também repetia que sou louco, sem limites, um psicopata. Não sei, sei lá. Apenas sigo em frente, todo dia, inclusive agora.

A canção vai terminar. Daí, acho que vou pra casa. Vim curtir o show, principalmente uma única música. E acho que, pelo menos por hoje, já deu.

Mas, enfim, chega o momento mais emocionante da canção. É o solo de baixo. Não tem palavras e me diz tanto, compreendo o que o baixista sugere ao tocar cada nota, cada frase musical, cada pausa. Só não sei explicar o que é.

Esse solo me apresenta uma sensação de liberdade e sinto que posso fazer o que eu quiser, mas não sei o que eu quero. Talvez eu pudesse estar no palco, tocando com a banda, fazendo esse solo, voando.

Narrativa de Marcio Renato dos Santos publicada em Outras dezessete noites (Tulipas Negras, 2017), o sexto livro de contos do autor.

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