O segredo da bem-aventurança de Chuni Kuni


Nenhum gole, nenhum trago até o fim do dia? Nas segundas até consigo, mas na terça bebo um pouco, e depois vou até domingo. Que dia é hoje? Quarta? Não sei. Sei que o meu fígado dói, e tenho certeza de que essa dor é de tanto beber. Penso que posso parar, se quiser, mas por que não uma, duas ou mais doses toda noite?

O dia começou, estou no trabalho e aqui não bebo. Não quero misturar as coisas. Só misturo cerveja com vinho, mas isso é à noite. No expediente cumpro os compromissos. Fora daqui sou outra pessoa. Ou, talvez, me transforme em outro. Por isso evito, sempre evitei, festas de empresa. Se o pessoal do escritório me encontrar bebendo, não sei, mas tenho a impressão de que posso ter a minha imagem desconstruída, e perder o emprego.

Estou sentado e não consigo fazer nada. O computador está ligado, entro na internet, confiro os e-mails, nenhuma mensagem nova. Acesso o Face, me canso, sigo para um site de notícias, nada me prende. Quero fazer algo, qualquer ação.

Caminhar.

Isso. Dar uma volta pelos corredores da empresa.

Entro no banheiro. Posso esconder uma garrafa aqui dentro, posso? Câmeras monitoram a movimentação, mas a vontade de beber me faz pensar em alternativas para ter álcool por perto.

Não.

Preciso dar um tempo com o álcool. Gostaria de atravessar a semana sóbrio para aproveitar meu tempo livre. Quem sabe, lúcido, eu poderia praticar natação, levantar e descer pesos, patinar, correr, ler, ir ao cinema ou tocar algum instrumento. Mas só penso em bebida, e bebo.

Hoje é quarta ou quinta? Sei que ontem, que dia foi mesmo?, ao voltar pra casa, vi uns sujeitos bebendo no balcão de um bar na rua da minha casa. Escutava, sem nitidez, os sons guturais. Os sujeitos discutiam, a gargalhar, fiquei com vontade de parar com eles ali e beber, conversar e rir.

Mas não.

Fui pra casa. Comecei com cerveja em lata, depois, em garrafas de vidro. Liguei o som, seis, sete álbuns e a cerveja acabou. Pensei em ligar para uma empresa de entrega e pedir mais cerveja, mas lembrei que tinha vinho na adega. Escutei outros CDs até a metade da segunda garrafa.

Passei a noite no sofá.

Havia uma reunião, ou um compromisso inadiável, e eu chegaria atrasado. Ao tomar banho, articulei uma possível desculpa – trânsito, consulta médica.

Cheguei ao escritório e me avisaram que a reunião, ou o compromisso inadiável, foi desmarcado. Sentei na cadeira e liguei o computador para não fazer nada. Me dei conta de que durante o percurso, de casa ao escritório, não pensei em bebida.

Nenhuma cobrança, nenhum impasse, nenhum desafio, a não ser aguentar o relógio seguir por oito horas. Depois, tudo possível, mas, na realidade, tudo impossível. Quando eu poderia fazer algo, no fim do expediente, ao invés de agir, eu bebia.


Flertei e conheci a decadência física e, apesar dos drinks diários, sobrevivi. Só não sei como. Talvez por causa de uma saúde resistente favorecida pela genética ou por causa daquilo que chamam de sorte. Também não entendo como os meus rendimentos aumentaram. Todo mês sobra uma quantia significativa do salário, apesar dos excessos e das garrafas vazias que se acumulam dentro no meu apartamento.

Em filas, elevadores, no banco, na praça, por aí, encontrei sujeitos com quem estudei, trabalhei, conheci em outros tempos, tempos em que esses sujeitos bebiam até mais do que eu. Agora, no presente, essas pessoas se tornaram bem-sucedidas e, fora esse detalhe, todos eles também haviam deixado de beber.

Acompanhei a trajetória do Alberto, do Bernardo, do César, do Daniel, do Ferdinando, do Gastão, do Hamilton e de outros por jornais, revistas, pela internet, principalmente pelo Face. Eles tornaram-se pessoas públicas. Em algumas situações, também estive próximo, até fisicamente, de alguns deles. Uma noite, no balcão de um bar, escutei o Ferdinando falar, para um amigo, sobre projetos e realizações em meio a risadas e goles de água. Não me reconheceu. Possivelmente nem me viu. Também escutei entrevistas do Gastão no rádio, e do Hamilton, em canais de televisão.

Enquanto o Alberto, o Bernardo, o César, o Daniel, o Ferdinando, o Gastão, o Hamilton e outros tantos devem ter vindo ao mundo com uma missão, talvez destinados a construir algo, aterrissei por aqui a passeio ou, com mais precisão, a descanso. Vim para beber, me embriagar e viver aquele estado em que a razão não tem vez.


Beber todo dia, toda noite, me trouxe dor de cabeça. A sensação dos primeiros goles é prazerosa, mas nos minutos, horas, copos e garrafas seguintes o que se entende por raiva toma conta do que sou. Já perdi o controle e me envolvi em conflitos por causa do consumo de álcool. Briguei, bati, apanhei, mais apanhei do que bati, e os efeitos foram irreversíveis. Me afastei de amigos, desfiz casamentos, inclusive o meu, e escapei de balas disparadas por armas de fogo contra o meu corpo.

O que me trouxe mais problemas foi a minha covardia no mundo físico, que se transformou em coragem, relativa, na realidade da internet. Apesar de cordial, de sorrisos, bom dia, oi, tudo bom?, tudo bem?, ao beber, me transformo em um sujeito hostil, talvez o ser agressivo real, que eu camuflo e dissimulo para sobreviver.

Já havia lido, na internet mesmo que, se beber, não tecle – se beber, não entre nas redes sociais. Mas entrei, bêbado, por diversas vezes, no Face.

Ligava o som da sala e começava a beber. Na primeira hora, experimentava uma ilusão de liberdade. Seguia com as canções, dançando sozinho. Mas chegava um ponto em que eu deixava de me sentir leve. Se era uma palavra de uma canção ou a necessidade de ir ao banheiro que deflagravam a mudança, não sei. De um segundo para o outro, sentia vontade de falar algo para alguém, e ligava o computador. Entrava no Facebook e elogiava quem não conhecia. Mais que tudo, xingava conhecidos ou pessoas de quem não gostava, apesar de ser obrigado a conviver. Por não ter coragem de enfrentar diretamente, ofendia pelo mundo virtual conhecidos de pessoas que trabalhavam comigo.

Os colegas do trabalho sabiam dos meus movimentos virtuais, olhavam pra mim, e eu tinha a impressão de que eles esperavam que eu falasse algo. Seguia quieto, como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse feito nenhuma postagem ou comentário virtual ofensivo.

Não fosse por uma ligação ou engano telefônico no meu ramal, eu poderia ser considerado mudo ou passaria completamente invisível no ambiente de trabalho.

Mas um sujeito que trabalhava comigo se incomodou com os meus comentários e algumas postagens no Facebook. Ele chegou na frente da minha mesa, e me xingou. Fiquei surpreso com a atitude. Não lembro o que ele disse, e teve início um bate-boca, outros colegas chegaram, começou a juntar gente, não sei, talvez eu tenha percebido o contexto como um ringue. Aquele sujeito a me desafiar – ele era protegido por um dos homens mais poderosos da empresa. Isso, e muito mais, possíveis consequências, nem levei em conta no instante em que acertei um soco no estômago dele.

Machuquei o sujeito, o ameacei de morte, avisei que, se ele fizesse alguma queixa, a situação, dele, se complicaria. Após bater, muito, no colega, voltei para a minha mesa, sentei na cadeira e liguei o computador. Um burburinho tomou conta do ambiente, e colegas ajudaram aquele homem machucado a se levantar. Aos poucos, a sala ficou vazia e permaneci olhando sites na tela do computador até o fim do expediente.

Saí e planejei parar em algum bar, mas não estava com vontade de beber. Voltei para o apartamento e, pela primeira vez em muitos anos, coloquei roupa de ginástica e corri na esteira. Tomei banho, bebi quase um litro de água, fui deitar e dormi por horas.

Uma ligação telefônica me despertou. Passava das nove da manhã. Um colega, do departamento de recursos humanos da empresa, disse que as minhas férias foram antecipadas, e eu poderia descansar durante os próximos trinta dias. O dinheiro do benefício já estava na minha conta.

Que você seja feliz, disse a voz, antes de desligar o telefone.

Levantei e, desde o momento em que espanquei o colega de trabalho, não senti vontade de beber, nem pensei em álcool. Tomei banho, coloquei jeans, camiseta, tênis e segui até o centro. Parei em um café, pedi água com gás, um expresso e li jornais. Depois, passei em uma livraria, comprei um Vila-Matas, outro André Sant'Anna e dois da Luci Collin. Ainda tive disposição para conferir um lançamento brasileiro em uma sala de cinema de um shopping. De volta ao apartamento, havia cervejas na geladeira, vinhos na adega, mas segui com água e café.

Segui sem nenhum impulso de me embriagar durante as férias, as primeiras que passei na cidade. Aqueles dias e noites são minhas melhores memórias. Não fiz quase nada, mas também não ingeri álcool. Na véspera de retornar ao trabalho, o mesmo sujeito que me avisou sobre as férias, anunciou, por telefone, que eu havia sido demitido. Não seria necessário retornar ao escritório. Um depósito, da demissão e de outros direitos trabalhistas, já estava na minha conta. Agradeci a ele, e desejei uma boa vida.

Longe da empresa, e do álcool, o meu cotidiano se transformou. Uma sequência de acasos fizeram com que eu, Chuni Kuni, me transformasse em um sujeito tão bem-sucedido como o Alberto, o Bernardo, o César, o Daniel, o Ferdinando, o Gastão, o Hamilton e outros homens prósperos. Mudei de endereço, conheci cidades em todos os continentes e sigo sóbrio.

Será que a ausência de bebida alcoólica me abriu o caminho da bem-aventurança?

Penso nisso todos os dias. Agora, os termômetros registram mais de 40.ºC aqui em Madri, onde estou há alguns meses. Sinto sede, muita sede. Uma, só uma, pode fazer mal? Duas, três? O garçom se aproxima e eu tenho certeza, não vou pedir água, café, nem refrigerante, chá ou suco.


Conto que escrevi para a coletânea Wir Sind Bereit (Verlag Lettrétage, 2013), organizada por Marlen Eckl, publicada na Alemanha. Posteriormente a narrativa foi incluída em 2,99 (Tulipas Negras, 2014), o meu terceiro livro de contos.

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