Boquita pintada
Argh!
Alan
levanta da cama, segue até o banheiro e vomita no vaso sanitário. O líquido transparente
mistura-se com a água da descarga e desaparece. Ele já está em pé, olha no
espelho e não encontra no rosto marcas, nem manchas ou batom. Tem quase certeza
que viveu uma experiência violenta nas horas mais recentes, mas pode apenas ter
se retirado de um cenário que se desmancha quando abre os olhos.
O
arquiteto está sem roupas, dormiu pelado, janela aberta e, apesar disso, não se
resfriou. Venta e a brisa o refresca, mas seu corpo segue tenso, suando, nesta manhã
de domingo.
Ontem,
Alan se dirigiu a um bairro desconhecido. À noite, deixou o carro em um
estacionamento e caminhou por uma rua onde havia um rio, árvores, bares e
restaurantes. Olhava uma placa, depois a fachada de uma sanduicheria, um café
e, então, na calçada, um homem, que também parecia ser uma mulher, falou do prato
surpresa, tradição daquele estabelecimento, o bar e restaurante Boquitas
Pintadas. Alan aceitou a sugestão e entrou.
Foram
poucos passos da porta de entrada à mesa. Em menos de cinco minutos, o prato
surpresa. Uma pizza. O presunto devia ter passado do prazo de validade. Talvez
nem fosse presunto. A massa também estava vencida e os pedaços de calabresa não
eram calabresa. Tudo naquela refeição não era o que parecia ser.
A
bebida dava a impressão de ser cerveja, mas não era, e o azeite de oliva também
não era azeite de oliva.
Alan
mastigou e engoliu a refeição, incluindo goles de bebida, em menos de dez
minutos. A vontade de vomitar começou ali mesmo na mesa do Boquitas Pintadas,
mas ele segurou o vômito. Pagou a conta e saiu.
Não
comeu nada durante o domingo. Só conseguiu beber água, vomitou algumas vezes e
ingeriu soro caseiro. Na cama, tentava ler reportagens de uma revista de
arquitetura, mas se desconcentrava. A dúvida era se sonhou ou naquela madrugada
havia se transformado em um travesti.
Alan
acordou na segunda-feira sem lembrar dos sonhos. Na manhã de terça e no dia
seguinte também teve a sensação de que não havia sonhado. Na quarta, trabalhou durante
quase doze horas e, ao anoitecer, decidiu ir ao Boquitas.
Antes
das seis da manhã da quinta-feira, Alan levanta da cama e vai ao banheiro.
Confere as fezes, mas só tem sangue no fundo do vaso. O arquiteto começa a
suar, sente na boca o gosto de carne crua de ontem à noite e lembra que, na
madrugada anterior, atuava como travesti e foi currado por seis ou sete
travestis.
Um
projeto exigiu dedicação exclusiva. O arquiteto ficou dentro do escritório durante
duas semanas, só saiu pra dormir no apartamento. Até as refeições foram
realizadas na mesa de trabalho. Não lembra de ter sonhado durante a temporada.
Nos
poucos minutos em que não trabalha, lembra do que aconteceu ao acordar
recentemente, quando vomitou e na manhã em que evacuou sangue. O arquiteto pensa
em agendar uma consulta com um médico.
Aquele
projeto foi finalizado, o cliente aprovou e a rotina de Alan voltou a ter menos
pressão e mais intervalos. Em uma noite livre, quinta ou sexta, o arquiteto
retornou ao Boquitas. De manhã, ao acordar, teve a sensação de que no sonho ou
na aventura real ele era um travesti, e, desta vez, foi castrado. Apalpou o
pau. Ainda estava lá.
Alan
passou a jantar quase todas as noites no Boquitas Pintadas e, nas manhãs
seguintes, acordava em pânico. O sonho era uma continuidade do enredo da
madrugada anterior. À noite, em ruas quase sem iluminação, homens e mulheres
seguiam em busca de travestis. No chão, baratas entrando e saindo de qualquer
buraco. Trinta e cinco graus ou mais. O rosto dos personagens sempre borrado,
até mesmo o do sujeito que controlava todos, inclusive ele, Alan, o travesti
mais solicitado.
Acorda e não sente o gosto, para ele, ruim da comida do Boquitas. Pela primeira
vez não lembra o que sonhou, ou viveu, apesar de ter jantado no restaurante na
noite anterior. O arquiteto toma um banho de meia hora ou mais minutos. Ao sair
do box, não se enxuga. Pega um batom e escreve no espelho do banheiro: Alana.
Em seguida, passa batom nos lábios e tudo ao seu redor fica escuro, como nas
madrugadas em que não sabe se está sonhando ou é realidade.
Conto publicado
em Mais laiquis (Tulipas Negras,
2015), o meu quarto livro de narrativas.
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