Deu ruim (Vendetta)



Já perdeu a chave de casa? Ruim, né? E um voo? Pode ser complicado. Esqueceu a carteira em cima de um balcão? Acontece. Milagre se alguém a devolvesse com todos os cartões e o dinheiro, mas não devolveram. Uma foto sumiu e a primeira edição de um livro do Campos de Carvalho que você emprestou ano passado ninguém sabe onde foi parar. Aquele vinil da sua coleção, um Lou Reed raro, e o DVD do Fritz Lang também desapareceram. Deu ruim. Mas, sabe, tem coisa pior, bem pior.

Perdi uma coisa.

Pense em algo valioso, inestimável, insubstituível – aquilo que pra você não tem preço, apesar do valor. O seu carro. O apartamento. A grana economizada durante anos. Os vinhos da adega. A boneca inflável, aquelas gramas de pó ou o quase meio quilo de fumo que estavam guardados no armário. O iate, o videogame, uma bike, a casa da praia, o relógio de pulso ou a sua coleção de gravatas.

Imagine algo que, de fato, tem importância.

Uma pessoa. A filha? A amante. Ou então o gato, o pônei, a iguana, o furão, o cãozinho, quem sabe até o seu hamster.

E aí?

Já pensou perder o que você tem de mais valioso, o que a vida te deu aparentemente de graça ou aquilo que você, enfim, lutou para conquistar?

Pois eu perdi, caros interlocutores, vocês mesmos, sete leitores e leitoras. Perdi. Perdi algo de valor inestimável e insubstituível.

Vou até o banheiro, levanto a tampa do vaso e, antes de mijar, penso no inimigo. Olho no espelho enquanto lavo as mãos planejando vingança. Fecho a mão direita e dou um soco na palma de minha mão esquerda. Seco as mãos com a toalha, saio do banheiro e grito: deu ruim pra você!

Se estou no trabalho, na sauna, comprando um produto qualquer no shopping, até quando transo ou me masturbo, ao correr no parque e mesmo dirigindo o carro a ideia-fixa se manifesta e faz com que eu visualize alguma cena em que me defronto com o sujeito que me prejudicou.

Faz sete meses que, embriagado em um churrasco, disse que se alguém viesse a me prejudicar faria o que fosse necessário pra me vingar. Bebia e, após cada novo gole, anunciava possíveis retaliações: daria um tiro no joelho, arrancaria as unhas, amarraria o indivíduo em um poste para aplicar chicotadas ou descargas elétricas e introduziria besouros vivos na garganta de quem ousasse fazer algo comigo.

Faz menos de sete dias que um indivíduo fez algo realmente ruim pra mim, e só penso em vingança.

Mas agora há outra questão: o sujeito é perigoso.

Não é um pobre-diabo, é um caramunhão que possui dinheiro e acumula no currículo centenas de maldades praticadas e continua circulando como se nunca tivesse prejudicado nenhuma pessoa.

A minha situação é difícil, gostaria de dormir e acordar em outra realidade, mas a cada novo dia acontece algo ainda pior do que ontem. O Zamiel divulga a ação que me causou contrariedade e não tenho como reagir. O Asmodeu ri da minha desgraça. O capiroto, anjo dos abismos insondáveis, sinaliza que não basta massacrar – para ele é necessário seguir batendo, literal e simbolicamente na vítima. De diversos modos e sem descanso esse súcubo, Arimã, taneco, manfarrico, porco-sujo e espírito imundo me esfola.

Recebo uma chamada no celular e fico preocupado. É ele? O som do interfone também me deixa apreensivo. O Adolf Hitler pode estar na portaria.

Pela janela vejo alguém caminhando na rua e desconfio.

Antes da desgraça, gostava de ficar com o rosto na janela observando. Não entendia o motivo de moradores de prédios não permanecerem, como eu, por horas nas janelas ou nas sacadas, mas agora eu compreendo. É perigoso. No meu caso a exposição realmente representa um risco. Nem se eu fosse a moça feia, daquela canção, que se debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela, nem assim facilitaria.

Estou quase paralisado.

Deixei até de caminhar no bairro. Vai que estou na rua e o meu algoz aparece? Mentalmente planejo matá-lo, mas infelizmente não possuo nenhuma arma.

Para complicar ainda mais a minha situação, o Rodapé, o Gordinho Sinistro 1, o Gordinho Sinistro 2, o Esfinge, Paulette, a Gorda Loca, a Tia Lola, o Sandrinho Bauru, Pulga e o Camaleão, desafetos que cultivei durante anos, agora estão de olho em quase tudo o que faço.

E foi o tranca-rua quem os escalou.

Violam as correspondências, monitoram meus e-mails, escutam o que digo e o que dizem pra mim, até nas ligações telefônicas – se eu me confessasse talvez o apedrejador plantasse um espião vestido de padre.

Não bastava ter me prejudicado? O que mais o encarniçado quer? O desavindo sabe que sou mequetrefe, mero pica-milho, um borra-botas, bisbórria, samango, totó piruleta, Zé-prequeté e, principalmente, anódino, infortificado, imbele, nugatório e marasmático.

Meu plano é fugir disfarçado de velhinha. Com a fantasia, sigo pela rua, pego um táxi e vou até o aeroporto. Lá, compro passagem para qualquer destino. Talvez assim, em outra cidade, eu me liberte mesmo que apenas por um tempo de meu inimigo e de seus lacaios.

Se não der certo, há uma alternativa, difícil mas não impossível de realizar, que é distrair o narrador. Posso esperar ele reler este conto torcendo para que o computador trave ou, se eu tiver sorte, para o arquivose corromper fatalmente durante uma queda de luz. Quem sabe rezando, com pensamento forte, o autor desista de finalizar esta narrativa e nem a selecione para o livro.

E, ainda, tem um detalhe que o autor não se deu conta e o narrador ainda não sabe: o meu algoz sou eu, eu mesmo, esse eu sem nome – um eu insubordinado que agora, por decisão pessoal, independentemente de autor ou de narrador, se liberta e pode se reinventar em outra narrativa, quem sabe na realidade da internet.


Conto publicado em Outras dezessete noites (Tulipas Negras, 2017), o meu sexto livro de narrativas.

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