Anjo noturno: narrativas

 

Se alguém me pergunta: o conto já era? Ou então: tudo já foi feito no conto? Não tenho respostas, mas sei, e isso posso dizer, que Anjo noturno: narrativas (2017), do Sérgio Sant'Anna, aponta caminhos para o conto.

Tão bom deslizar pelas entrelinhas e linhas dessas narrativas que conheço, mas que a cada nova leitura provam que não as conheço de fato e talvez nunca as conhecerei plenamente por mais que a elas retorne, como aconteceu nesses dias e noites de maio de 2021.

Se tivesse que escolher, somente, 3 contos para reler, um deles seria "Augusta", o primeiro de Anjo noturno: narrativas. Helena e Francisco surgem, apesar de o narrador sugerir que "eles não são de verdade". Estão em uma festa, de onde saem para o espaço-tempo de potência desta experiência artística visceral de Sérgio Sant'Anna. Talvez eles só se materializem por causa da força que existe em um quadro, onde há uma mulher, criação de um artista visual suicida que viveu dentro do apartamento onde, durante a narração, os corpos de Francisco e Helena se conhecem: "Um homem à janela, com o torso nu e descalço, e que contempla a praia, o oceano, o navio, o farol. É tudo como uma composição. E uma mulher, usando uma combinação, que escreve, no computador, essa composição".

Desde a primeira leitura, em 2017, tenho a impressão, na realidade, a ilusão de que "Augusta" se fez enquanto eu leio, e alimento esse delírio a cada nova imersão na narrativa – mesmo impacto-efeito que "Um conto límpido e obscuro" provoca em meu imaginário. Neste caso – o segundo texto de Anjo noturno: narrativas – o personagem central, diante do fato de que uma mulher que ele amou não o quer mais, decide "torná-la para sempre real em si mesmo, transcrevendo-a em palavras".

"Um conto límpido e obscuro" é tão, mas tão bonito (sem nenhum momento de pieguismo) ao mostrar a dor de um personagem que perdeu a conexão com quem anteriormente tudo parecia fazer todo o sentido: "E era exatamente isso que ele estivera perdendo nesses últimos dois anos e pouco: ela inteira e, em boa parte, ele próprio, pois, sem ela, ele se tornara um sujeito muito mais pobre, e descobrira que esse tipo de amor que sentia tinha também essa virtualidade de um ser perder-se em parte no outro, tentar roubar suas qualidades – e não fora em parte essa voragem dele que a afastara?".

Se em "Talk show" o escritor trata das ilusões do universo de celebridades, e também do desejo, com possíveis nuances de sua experiência particular, em "A mãe" e "A rua e a casa" o autor explora a memória para recriar sensações e cenas que experimentou com intensidade.

"Ah, a rua Cesário Alvim. Os crepúsculos róseos, o aroma dos jasmineiros, o cantar das cigarras, o jogo da amarelinha, as cantigas e brincadeiras de roda, os belos lampiões da Light. Às dezoito horas em ponto o som da Ave-Maria nos rádios das casas e depois o sermão radiofônico de Julio Louzada.

Os tempos se misturando em sua cabeça e você se lembra de dona Lurdes, que da janela de seu apartamento na rua Davi Campista conversava com vocês, meninos, no quintal de casa, que a mãe mandara cimentar. Um dia vocês souberam que Eurico, o filho de Dona Lurdes, se suicidara, e aquela janela nunca mais se abriu. E foi só então que souberam o que era suicídio".

Os dois parágrafos transcritos são de "A rua e a casa", conto que altera beleza e dor, dor e beleza, memória transformada em arte, o que acontece em outras narrativas neste livro de magnífica linguagem por onde viajo, inclusive interrompo o breve relato para voltar a elas, provas de que o conto (ao menos no legado de Sérgio Sant'Anna) sempre tem caminhos e não, não morreu.

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