Onde nem quando
Joana sai do hotel, um, dois, três passos na calçada e
a certeza: está na praia. Setenta, sessenta, talvez cinquenta passos
a separam do oceano. Não realiza o ritual desde fevereiro de 2020, com
mais precisão, desde 26 de fevereiro, Carnaval daquele ano, antes do
início da pandemia. Hoje, tantos (quantos?) meses, mais de um ano
depois, ela e quase todos podem experimentar quase tudo o que
anteriormente era possível.
Os pés na areia, as sandálias em uma das mãos, a brisa
toca o corpo de Joana e, se alguém observar, não é difícil ver, há
lágrimas no rosto da mulher que veste biquíni escondido atrás de saia e
camiseta – dentro da bolsa tem carteira, filtro
solar, comprimidos, máscara e um objeto enrolado em uma toalha.
O mar.
Joana tem lágrimas no rosto e os dois olhos no
horizonte azul das águas que, lá, em um ponto distante, parece, para
ela, que se encontram com o céu, este de um azul mais
claro, mas quase da mesma tonalidade que a cor do oceano neste momento – passaram
poucos, nem dez minutos das dez horas da manhã.
Joana olha o morro, o da direita, depois o outro, à
esquerda, e volta a contemplar o oceano, mar
aparentemente calmo.
De fato, ela deseja nadar, atividade (entre
tantas) suspensa durante a
pausa que parecia sem fim, dias, noites, insônia, semanas, queda de
cabelo, tantos meses, sanidade questionada, choro e silêncio.
Talvez antes das sete horas, Joana calcula, dezenas de
funcionários da equipe de limpeza deixaram a areia pronta para receber
restos do consumo dos turistas. Apesar de
que, como alguns estão repetindo, a partir de agora – depois da
provação – pode ser que as atitudes venham a ser
outras, mas Joana não sabe como ela e os demais vão se comportar
nesta temporada.
Antes do mergulho, Joana veste a máscara,
sandálias nos pés, bolsa no ombro esquerdo, e segue pelo
calçadão beira-mar. Não tem ambulante nem quiosque e há outras
ausências, muitas: o coronavírus tirou de cena uma geração, jornais
impressos, revistas, alguns atravessadores, tantos empreendimentos
– o futuro de Joana com Paulo, por exemplo, foi cancelado.
“Somos melhores depois da COVID-19”.
Joana lê a frase em
um outdoor e quase sorri. Paulo a enganou não apenas
com Letícia, Beatriz, Daniela e Nina. Desviou dinheiro da conta,
levou CDs, vinhos, um triturador de papel, aquele laptop e, o
que Joana não aceita, ele furtou o fim da sua juventude.
– O dia promete.
Joana escuta uma mulher falar para um homem, possível
amante, que o dia traz possibilidades, e ela, Joana, sorri.
Agora, diz para si mesma, estou quase lá, próxima,
acrescenta, controlando a respiração, mais acelerada do que o normal – ela tem
prática em diminuir a tensão respirando de um jeito talvez
peculiar, técnica que aprendeu em um curso durante viagem
ao Oriente.
Joana entra na loja, tira a pistola da bolsa e diz:
– Vem comigo, Paulo. Você vai viajar.
Meu conto publicado em 18 de agosto deste 2020 na Ideias com ilustração do Vitor Mann.
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