Caminho de Santiago
Um,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, dois passos, outros sete
degraus, em sentido horário, estou em um andar abaixo de onde estava e um,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, outros dois passos, outros sete
degraus, em sentido horário, vou para baixo, não me canso, ainda não sei para
onde vou, sigo e tenho a impressão de ter escutado a voz do Cândido.
Ou
seria o Nicolau? Um não tem nada a ver com o outro, talvez eles nem se
conheçam. Eu os conheci em situações separadas por décadas. O Cândido me levou
até uma empresa, mostrou a encomenda que fez, eu fiz o meu pedido, no dia
seguinte voltei lá, sozinho, e comprei a produto do Cândido. Antes disso, ele
havia me ajudado, muito, durante travessias turbulentas e eu o passei para
trás, o que também fiz com o Nicolau.
Santiago?
O que é
isso?
Santiago.
Quem é?
Santiago?
Quem
está aí?
Santiago?
De onde
surgem as vozes? Quem são vocês? Ou é você? Por que me chamam? Será que é por
causa desses chamados que sigo um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete
degraus abaixo, dois passos, outros sete degraus em sentido horário? Por
quantos andares já passei?
Posso
parar, quem sabe?, e seguir por um desses andares. Posso? Isso é uma ideia:
interromper a marcha e entrar em um apartamento. Numa dessas escapo de algo
que me espera lá embaixo, no fundo, quando esse seguir acabar.
Isso,
isso mesmo.
Vou
interromper esse seguir automatizado, esse um, dois, três, quatro, cinco, seis,
sete degraus, dois passos, outros sete degraus em sentido horário, quer ver?
Olhe
aqui.
Interrompi
o fluxo. Será? Caminho por um andar, sem descer degraus. Estou em uma linha
reta. Mesmo? Há um som dentro do apartamento. Encosto a orelha, esquerda,
depois a direita, na porta. Vamos lá. Acho que essa voz é do, de quem mesmo?
Do Moby. Conhece? Ele é um sujeito que quase conheci, quase nos tornamos
amigos, mas.
Cada um
seguiu por uma direção. Ele para cima, e eu, para baixo, como seguia antes de
parar aqui, neste andar.
Fato é
que o Moby pode ser um concorrente, eventual adversário na luta para conseguir
tinto seco, brisa e carboidratos. Mas não, não competimos diretamente.
Não
lembro como, onde, quando, mas comecei a difamar o Moby. Em toda oportunidade
eu falava mal dele. Até para os amigos dele. Um dia, uma pessoa, um advogado,
me procurou e quis saber por que eu vivia a falar mal do Moby. Tergiversei, e
saí para um copo de água.
O Moby
abre a porta do apartamento, me convida para entrar e entro. Abre um
sorriso, me cumprimenta e vamos sentar nos sofás da sala. O Moby faz convites
para eu participar de eventos que podem me trazer visibilidade, retorno de imagem e
dinheiro. Deixo ele falar, ele fala, sorri, segue a falar, dizendo
Santiago, vamos fazer isso, aquilo – aparentemente há vontade, da parte dele, de me envolver
em ações e parcerias.
Escutar
eu escutei, mas não consegui falar. Desde muito falei mal do Moby e, então, ele
ali me convidando para projetos, todo gentil, não, não poderia ser e se fosse
era demais, muito, super, extra.
Disse,
ao Moby, que precisava sair, e ele perguntou se eu estava bem, eu disse que
sim, muito bem, e ele quis saber se eu tinha fôlego, não entendi, respondi que
sim, e ele ainda falou que faltava articular outras propostas, eu disse tchau,
caminhei até a porta e saí.
Retorno,
então, àquele um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, dois passos,
outros sete degraus, em sentido horário, estou, agora, em um andar abaixo de
onde estava e um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, outros dois
passos, outros sete degraus, em sentido horário e penso que só consegui
interromper essa sequência para enfrentar um fantasma, o Moby.
Eu não
o conhecia, apenas falava muito mal dele, e não é que o sujeito se revelou gente
boa?
Ou
estava todo gentileza só pra me colocar numa fria? Era armadilha e estou
confuso? Sigo em círculo, para baixo e não fico tonto. Fico? Conseguirei
interromper o fluxo mais uma vez? E, se eu parar, será para encontrar outro
fantasma?
Sigo, outra
vez, naquele mesmo um, dois, três, quatro, estou dentro de um relógio? Clique,
cloque? Não. Vou pela escada, já mudei de andar, daqui a alguns segundos,
pronto, cheguei a outro piso, inferior, e lembro de um sonho no qual eu estava
dentro de um ônibus.
O
veículo seguia por planícies e planaltos, e não havia destino anunciado para
os passageiros. Vimos, eu vi, pela janela, areia, grama, pedra, água doce e
salgada, terra, asfalto, sombra de árvores, calçada preta e branca, bancos,
curvas, azul, verde, vermelho, outras cores e quase fiquei cego de tanta luz.
O
sonho, não, não era aventura onírica, o ônibus parava em algumas estações,
passageiros saíam, outros entravam. Não encontrava o meu bilhete e levantei da
poltrona para perguntar ao motorista, mais de uma vez, se eu tinha de descer.
Ele não sabia e, de volta ao meu lugar, permaneci tenso durante parte do
trajeto – e devo ter adormecido ou as luzes se apagaram, não lembro.
Um,
dois, três, quatro passos, será que estou dentro de um rock? Tem sido um longo
tempo desde que comecei esse passeio, e um, dois, três, quatro. Isso é passeio?
Para onde? Não sei se vou a algum lugar e, se estou indo, não consigo me
convencer. Estou em uma marcha moto-contínuo rumo a qual estação?
Tem
sido um longo período de tempo, há muito tempo. O que é isso? Um, dois, três,
quatro passos. Agora, confesso, começo a cansar dessa repetição, desses um,
dois, três, quatro passos, desse descer e não chegar a nenhum ponto, a nenhum
descanso. Se for para parar e ter encontro com algum desafeto, como o Moby,
prefiro seguir, se bem que o Moby se revelou amistoso.
De novo
esse um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete degraus, dois passos, outros
sete degraus, em sentido horário, estou em outro andar abaixo de onde estava há
pouco e isso se emenda a um novo um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete
degraus, outros dois passos, outros sete degraus, em sentido horário, para
baixo.
Sigo
neste vai sei lá pra onde, se é que vai mesmo, mas isto está indo, não está?
Está sim, pelo menos algo, ou tudo?, diz que sim – mas se não for, penso, somente
agora neste momento, que eu poderia parar e ao invés de repousar em um piso,
sabe, eu poderia, vou dizer, preciso enunciar, se parasse de descer eu poderia
subir, não poderia?
Sim.
Quem sabe se, ao invés de descer, eu subisse? Numa dessas eu poderia, quem
sabe?, reencontrar pessoas com quem tive problemas e conversar. O encontro com
o Moby me iluminou. Eu falava mal dele, sem o conhecer, e daí, no primeiro
encontro, ele me tratou tão bem. E se eu voltar e refizer os meus passos? É uma
ideia, não sei se boa ou não, mas possibilidade.
No
entanto agora sim começo realmente a cansar e não sei se tenho e terei fôlego
para enfrentar uma subida. Esses reencontros poderiam exigir energia, e isso,
agora, quase não há.
Vejo,
há uma luz, será o fim? Quando tem luz no fim do túnel, não é farol de trem,
pode ser ausência de visão, excesso de olhar para estrelas, fogueira, chamas.
Tudo se torna branco e pode ser o final, enfim, dessa marcha, e se for, vou
seguir em meio a um branco total, tantos andaram e andam nesse mar, neve,
túnel, tend
Conto publicado em 2,99 (Tulipas Negras, 2014), o meu terceiro livro de narrativas.
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