Deu ruim (vendetta)
Já perdeu a chave de casa? Ruim, né?
E um voo? Pode ser complicado. Esqueceu a carteira em cima de um balcão?
Acontece. Milagre se alguém a devolvesse com todos os cartões e o dinheiro, mas
não devolveram. Uma foto sumiu e a primeira edição de um livro do José J.
Veiga, ou um da Luci Collin (neste caso com autógrafo), que você emprestou ano
passado ninguém sabe onde foi parar. Aquele vinil da sua coleção, um Nei Lisboa
raro e o DVD do Jean-Pierre Bekolo também desapareceram. Deu ruim. Mas, sabe,
tem coisa pior, bem pior.
Perdi uma coisa.
Pense em algo valioso, inestimável,
insubstituível – aquilo que pra você não tem preço, apesar do valor. O seu
carro. O apartamento. A grana economizada durante anos. Os vinhos da adega. A
boneca inflável, aquelas gramas de pó ou o quase meio quilo de fumo que estavam
guardados no armário. O iate, o videogame, uma bike, a casa da praia, o relógio
de pulso ou a sua coleção de gravatas.
Imagine algo que, de fato, tem
importância.
Uma pessoa. A filha? A amante. Ou
então o gato, o pônei, a iguana, o furão, o cãozinho, quem sabe até o seu
hamster.
E aí?
Já pensou perder o que você tem de
mais valioso, o que a vida te deu aparentemente de graça ou aquilo que você,
enfim, lutou para conquistar?
Pois eu perdi, caros interlocutores,
vocês mesmos, sete leitores e leitoras. Perdi. Perdi algo de valor inestimável
e insubstituível.
Vou até o banheiro, levanto a tampa
do vaso e, antes de mijar, penso no inimigo. Olho no espelho enquanto lavo as
mãos planejando vingança. Fecho a mão direita e dou um soco na palma de minha
mão esquerda. Seco as mãos com a toalha, saio do banheiro e grito: deu ruim pra
você!
Se estou no trabalho, na sauna,
comprando um produto qualquer no shopping, até quando transo ou me masturbo, ao
correr no parque e mesmo dirigindo o carro a ideia-fixa se manifesta e faz com
que eu visualize alguma cena em que me defronto com o sujeito que me
prejudicou.
Faz sete meses que, embriagado em um
churrasco, disse que se alguém viesse a me prejudicar faria o que fosse
necessário pra me vingar. Bebia e, após cada novo gole, anunciava possíveis
retaliações: daria um tiro no joelho, arrancaria as unhas, amarraria o
indivíduo em um poste para aplicar chicotadas ou descargas elétricas e
introduziria besouros vivos na garganta de quem ousasse fazer algo comigo.
Faz menos de sete dias que um
indivíduo fez algo realmente ruim pra mim, e só penso em vingança.
Mas agora há outra questão: o sujeito
é perigoso.
Não é um pobre-diabo, é um caramunhão
que possui dinheiro e acumula no currículo centenas de maldades praticadas e
continua circulando como se nunca tivesse prejudicado nenhuma pessoa.
A minha situação é difícil, gostaria
de dormir e acordar em outra realidade, mas a cada novo dia acontece algo ainda
pior do que ontem. O Zamiel divulga a ação que me causou contrariedade e não
tenho como reagir. O Asmodeu ri da minha desgraça. O capiroto, anjo dos abismos
insondáveis, sinaliza que não basta massacrar – para ele é necessário seguir
batendo, literal e simbolicamente na vítima. De diversos modos e sem descanso
esse súcubo, Arimã, taneco, manfarrico, porco-sujo e espírito imundo me esfola.
Recebo uma chamada no celular e fico
preocupado. É ele? O som do interfone também me deixa apreensivo. O Adolf
Hitler pode estar na portaria.
Pela janela vejo alguém caminhando na
rua e desconfio.
Antes da desgraça, gostava de ficar
com o rosto na janela observando. Não entendia o motivo de moradores de prédios
não permanecerem, como eu, por horas nas janelas ou nas sacadas, mas agora compreendo.
É perigoso. No meu caso a exposição realmente representa um risco. Nem se eu
fosse a moça feia, daquela canção, que se debruçou na janela pensando que a
banda tocava pra ela, nem assim facilitaria.
Estou quase paralisado.
Deixei até de caminhar no bairro. Vai
que estou na rua e o meu algoz aparece? Mentalmente planejo matá-lo, mas
infelizmente não possuo nenhuma arma.
Para complicar ainda mais a minha
situação, o Rodapé, o Gordinho Sinistro 1, o Gordinho Sinistro 2, o Esfinge,
Paulette, o Binaca, a Gorda Loca, o Suinilson Monturo, a Tia Lola, o Sandrinho
Bauru, Pulga, o Conselheiro Acácio do Século 21 e o Camaleão, desafetos que
cultivei durante anos, agora estão de olho em quase tudo o que faço.
E foi o tranca-rua quem os escalou.
Violam as correspondências, monitoram
meus e-mails, escutam o que digo e o que dizem pra mim, até nas ligações
telefônicas – se eu me confessasse talvez o apedrejador plantasse um espião
vestido de padre.
Não bastava ter me prejudicado? O que
mais o encarniçado quer? O desavindo sabe que sou mequetrefe, mero pica-milho,
um borra-botas, bisbórria, samango, totó piruleta, Zé-prequeté e, principalmente,
anódino, infortificado, imbele, nugatório, desvirilizante e marasmático.
Meu plano é fugir disfarçado de
velhinha. Com a fantasia, sigo pela rua, pego um táxi e vou até o aeroporto.
Lá, compro passagem para qualquer destino. Talvez assim, em outra cidade, eu me
liberte mesmo que apenas por um tempo de meu inimigo e de seus lacaios.
Se não der certo, há uma alternativa,
difícil mas não impossível de realizar, que é distrair o narrador. Posso
esperar ele reler este conto torcendo para que o computador trave ou, se eu
tiver sorte, para o arquivo se corromper fatalmente durante uma queda de luz.
Quem sabe rezando, com pensamento forte, o autor desista de finalizar esta
narrativa e nem a selecione para o livro.
E, ainda, tem um detalhe que o autor
não se deu conta e o narrador ainda não sabe: o meu algoz sou eu, eu mesmo,
esse eu sem nome – um eu insubordinado que agora, por decisão pessoal,
independentemente de autor ou de narrador, se liberta e pode se reinventar em
outra narrativa, quem sabe na realidade da internet.
Conto publicado em Outras
dezessete noites (Tulipas Negras, 2017), o meu sexto livro de
narrativas.
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