Bode careca
A
situação na empresa mudou quando anunciei que iria publicar um livro.
Anteriormente a rotina era como deve ser em outros empregos. Dias agradáveis,
outros nem tanto, tudo seguindo. E isso por anos — tempo suficiente para eu
aprender o momento do alô, quando mostrar os dentes e a hora de calar.
Encher
linguiça pode ser interessante. Não tem a ver com a frase do Otto Bismarck, que
teria dito que uma pessoa não deve saber como são feitas as salsichas. O
chanceler alemão realmente disse algo assim? Difícil acreditar. Alguém atribuiu
esse equívoco conceitual a ele. Só pode. Bismarck era inteligente. E o cenário
do meu ganha-pão nunca foi repugnante, com gordura e sangue escorrendo por
todos os lados.
Passei
por duas ou três seções antes de trabalhar no setor onde eram produzidas as
linguiças, ou melhor, as salsichas de cachorro-quente. Tudo automatizado e
limpo. Eu quase não colocava a mão na massa, no composto, a não ser, com luvas,
quando vistoriávamos as vísceras de suínos e restos de frango, a matéria-prima
das salsichas.
O Bode
era o supervisor da linha de produção. Cheguei na empresa com pouca experiência
comprovada, menos de três anos de registro em carteira. Mas na minha família,
desde onde tenho conhecimento, e pelo que se comenta, todos enchem linguiça. Do
tataravô até hoje, aprende-se a fazer embutidos em casa. E, por causa desse
histórico, a partir do momento em que entrei no setor a produtividade aumentou.
No fim
do terceiro mês o salário chegou com bônus. Desde aquele dia, o Bode e eu
passamos a almoçar quase diariamente em um mesmo restaurante. “Só não vale
pedir salsicha, tá oquei?”. Ele repetia o comentário quando a garçonete se
aproximava perguntando sobre o nosso pedido. “O prato do dia, pode ser?”. Essa
era a segunda frase que o Bode dizia antes das refeições.
Além de
comer e beber, o Bode e eu conversávamos sobre cinema, as obsessões dos
narradores do Enrique Vila-Matas e novidades da indústria cultural. Não
falávamos sobre exportação, juros, política, conjuntura econômica, pecuária ou
suinocultura. Naqueles trinta minutos, o intervalo entre os dois turnos, não
lembro de ter conversado com o Bode sobre trabalho.
Tenho
impressão de que nunca comentei com o Bode que eu escrevia ficção e publicava
fragmentos em jornais e revistas. Também não mencionei, durante aqueles
almoços, que havia enviado um livro de contos para uma editora.
A
produção de salsichas na empresa aumentou, muito, nos quatro primeiros anos.
Não preciso dizer, até já havia comentado, mas foi a minha presença, o meu
conhecimento, que alterou a produtividade. O Bode sabia disso e se movimentou,
com ações e também verbalmente, para que os proprietários e os gestores não
soubessem que a atuação de um único funcionário tinha efeito naquele surpreendente
ciclo de resultados positivos.
O fato
de o Bode ter tomado para si os méritos não me deixou chateado. Os colegas de
trabalho passaram a me hostilizar e o Bode me defendeu em várias situações.
Passei a ser o alvo de piadas, diretas e indiretas, agressões verbais e
sabotagens realizadas pela Anta, pela Mula, pela Ursa Menor, pelo Chacal e pelo
Lobo Bobo.
A Anta,
a Mula, a Ursa Menor, o Chacal e o Lobo Bobo já trabalhavam na empresa antes de
eu ser contratado e diziam, diariamente, que eu era o empolgado da vez. Todos
eles, isso escutei no banheiro, não lembro quem disse, também teriam trabalhado
com entusiasmo e foram responsáveis, individualmente, cada um no seu tempo,
pelo aumento da produção de salsichas. Mas apenas no primeiro, no máximo no
segundo ano de empresa. Depois, o rendimento de cada um diminuiu,
irreversivelmente.
A Anta,
a Mula, a Ursa Menor, o Chacal, o Lobo Bobo, o Bode e outros funcionários não
entendiam o motivo de eu seguir por quatro, cinco anos empolgado. E eu poderia
estar rendendo na empresa até hoje. Só não continuei no mesmo ritmo por que uma
editora, aquela para onde enviei uns contos, anunciou a publicação daquele que
seria o meu primeiro livro.
Esse
fato mudou tudo.
Não,
não me tornei famoso. Nem como escritor, nem na minha profissão. Continuo
enchendo linguiça oito horas por dia, de segunda à sexta, mas, agora, em outra
empresa. Este é o meu quinto livro e, quem quiser, pode perguntar por aí:
conhece o contista? Fora os parentes e alguns colegas de trabalho, quem
conhece? Nem os vizinhos.
Quando
foi anunciada a publicação do meu livro de estreia, algumas pessoas, colegas e
parentes, comentaram que eu me tornaria conhecido. Poucos comemoraram e houve,
para mim, reações surpreendentes. O Bode, por exemplo, se tornou um inimigo
declarado.
Em um
primeiro momento, ele me parabenizou, comentando que, enfim, teria um colega
famoso. A Anta, a Mula, a Ursa Menor, o Chacal e o Lobo Bobo também me
cumprimentaram após a divulgação da notícia.
Já no
dia seguinte, os colegas começaram a fazer comentários, por exemplo: ele não
está enchendo linguiça na literatura? A Anta perguntava durante o expediente
sobre a conjugação de verbos irregulares. A Ursa Menor queria saber se eu
conseguia explicar a diferença entre ditongos orais e nasais. Eu começava a
falar, mas como, em geral, não respondia imediatamente às perguntas, os colegas
riam, dizendo mais ou menos o seguinte: como alguém pode escrever ficção sem
dominar a norma culta do idioma?
Em
seguida, o Bode estimulou o conflito entre os funcionários. No caso, entre os colegas
e eu. A Anta, a Mula, a Ursa Menor, o Chacal e o Lobo Bobo agiam coletivamente
contra tudo o que eu fazia. Se eu sugeria uma modificação nos processos, eles
reagiam negativamente, quase ao mesmo tempo. O Bode também me sobrecarregou de
tarefas, que eu realizava praticamente sem cometer erros. Mas quando algo,
mínimo, apresentava problemas, ele parava toda a produção e, na frente dos
outros, chamava a minha atenção por meio de críticas que, antes da notícia da
publicação do meu livro, não eram feitas, mesmo quando eu errava.
O Bode
disse aos proprietários que eu estava distraído, preocupado com o lançamento do
livro, já não rendia como antes e que, por isso, eu deveria ser demitido. Soube
dessa e de outras informações durante uma conversa, reservada, com um dos donos
da empresa.
Aconteceram
incidentes, a respeito dos quais prefiro não comentar e, quando o Bode foi
encontrado morto, fui um dos primeiros a ser chamado para depor.
Naquele
período, durante um jantar, dividi a mesa com um conhecido, o Pavão, um
terapeuta, amigo do Bode. Depois de algumas taças de vinho, eu disse para o
Pavão que, se o Bode continuasse me prejudicando na empresa, eu daria uma surra
nele. Ou contrataria alguém para espancá-lo. O Pavão sorriu e afirmou que o
Bode, de fato, passou a agir com agressividade, até com os amigos, a partir do
momento em que foi anunciada a publicação do meu livro. O Bode, isso quem me
contou foi o Pavão, também escrevia contos e sonhava ter um livro publicado.
O Bode
raspava o cabelo e algumas pessoas o chamavam de Bode Careca. Cultivou um
cavanhaque nos últimos meses de vida. Na última imagem dele, registrada pelo
circuito de câmeras da empresa, o Bode estava sem roupas, com o cabelo raspado
e de cavanhaque. Ele se jogou dentro do triturador de carnes.
O
investigador disse que o meu nome aparece em vários textos encontrados no
computador do Bode. Prestei depoimento, apesar de que, no horário da morte do
colega, eu estava autografando o meu primeiro livro.
O
suicídio do Bode foi divulgado como parada cardíaca.
Na
delegacia, tive acesso aos arquivos onde encontrei referências diretas e
indiretas ao meu nome. O colega de trabalho condenava as minhas ações,
reprovava o jeito de eu mastigar, de rir, entre tantas observações. De maneira
geral, tinha convicção que eu era um sujeito desprezível, sem refinamento
intelectual, um enchedor de linguiça que estava querendo se fazer passar por
escritor.
O Bode
repetiu uma mesma ideia em quatro ou cinco arquivos: queria telefonar para
jornais e revistas denunciando que, literariamente, eu era uma mentira. E nem
precisou acionar a imprensa: os jornais e as revistas praticamente ignoraram o
meu primeiro livro, e também o segundo, o terceiro, o quarto e, provavelmente,
este quinto não terá nenhuma visibilidade.
Se o
Bode soubesse que eu continuaria ganhando a vida como um anônimo que enche
linguiça, quem sabe, ele ainda não poderia estar por aqui, para rir dessa
piada, dessa farsa, dessa encenação toda?
Conto publicado em Mais laiquis (2015), o meu quarto livro de narrativas.
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