Noite sem fim
A
escuridão, que evidentemente tem o seu contraponto na existência da luminosidade,
a escuridão assim compreendida e, detalhe, arquitetada é o que conduz a produção
literária e poética de Fábio Campana ao longo de décadas. Seja em narrativa
longa, Ai (2007), nos contos de Todo o sangue (2004) ou em poemas, por
exemplo, no recém-publicado As coisas
simples (2019), Campana enfrenta o escuro (insisto, apesar da luz) e, em
tal situação, apresenta imagens, cenas e narrativas sobre questões humanas.
É
possível supor, e isso é mera suposição, que Fábio Campana em seu percurso
criativo tenha como leitmotiv o poema
“Lagoa”, publicado em Alguma poesia
(1930), o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade. No texto, a voz poética
afirma que, apesar do mar, que pode ser bonito e até bravo, não importa, “eu vi
a lagoa”. Há, inclusive, insistência: “Eu não vi o mar./ Eu vi a lagoa...”.
Em
diálogo com a essa oposição drummondiana lagoa-mar, Fábio Campana
deliberadamente minimiza em sua produção poética e literária o que há de solar,
suave e fácil na existência. Narrativas e poemas do autor, em sintonia com a
tradição e vozes contemporâneas, têm como matéria-prima o conflito, o que abre
espaço, por exemplo, para o mote de Manuel Bandeira da vida que poderia ter
sido e não foi. Em As coisas simples,
Campana revisita a questão a partir de um recorrente personagem infantil que
perde tudo, da inocência às ilusões, como está sinalizado no poema que empresta
o nome ao livro: “O menino, aquele, que ensaiou papéis de herói,/ já não
existe. Morreu com as utopias e os pequenos deuses/ inventados no ano da
iconoclastia”.
O
personagem infantil, presente em obras anteriores do autor, também aparece em
outros textos de As coisas simples,
em alguns casos com mais idade, como no segundo poema, “Écogla”: “Um dia eu era
jovem e tinha a vocação dos rios,/ desejo intenso de chegar ao mar”. A partir
desse menino/jovem, Fábio Campana compõe um painel sombrio (ressalto, apesar da
existência da luz), em que a vocalização é feita por sujeitos que, como a
maioria dos humanos, perderam muito, sempre algo irreversível: é o dia (com sua
luminosidade) que desmorona (“Dia que não termina”) ou os amigos (possível luz
da jornada) que partiram (“Ausências”).
A
perspectiva do fim da existência (noite sem fim, talvez ausência total de luz)
é outro mote que dá o tom de não poucos poemas de As coisas simples, como “Fim de comédia”, “Tempo” e “Preparativos”:
“Espero morrer com dignidade,/ despido de ruídos,/ sem a sombra dos teus
gritos.// Altivo, horizontal, ereto./ Solene, banhado e maquiado/ Sob as
pálpebras do tempo.// No bolso esquerdo, o corpo de um poema”.
O
breu construído por meio de linguagem por Campana também tem alguns hiatos, estações
de luz, viabilizados pela evocação do amor e das paixões, com seus encontros e
desencontros em variadas nuances. Um dos pontos altos do livro é, justamente,
um melancólico poema sobre o desejo, que traz no título referência às artes
visuais, outra obsessão do autor, “Gravura de Segall”: “Talvez um dia eu
desperte/ com o som dos pássaros/ sobre meus olhos,/ sobre minha garganta,/ e
volte a encontrar a mulher/ de coxas firmes, abertas,/ que me olhou em um café/
com a placidez imperturbável,/ e a elegância distante/ das prostitutas negras/
nas gravuras de Segall”.
O
primeiro verso do poema “Pequeno deus” traz uma provável chave, não
necessariamente para decifrar, mas, para ler a obra de Campana: “A noite é
minha pátria”. E nessa noite-pátria, elaborada há décadas com versos,
parágrafos, contos e romances, Fábio Campana – paradoxalmente – joga luzes no
nonsense do cotidiano, na falta de sol de temporadas existenciais consideradas
perdidas e ainda ilumina com poemas, por que não?, esses dias e noites
definidos por não poucos como sombrios, soturnos e quase inabitáveis.
Resenha que escrevi a respeito e As coisas simples (2019), livro de poemas do Fábio Campana.
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