Binaca


Nunca mais fui ao Café & Restaurante Trem Pagador. Almocei por anos no local, onde a refeição era e talvez ainda seja servida até as 15 horas. Por ser autônomo, poderia, em tese, almoçar na hora que quisesse. No entanto, para sobreviver sou obrigado a participar de reuniões, algumas realizadas no tradicional horário de almoço. Mas, enfim, frequentei assiduamente o estabelecimento daquele empresário, o Trem Pagador, conhecido por investir no cultivo de laranjas e na criação de patos.
Eu chegava pouco antes do serviço ser encerrado, portanto, quase não havia clientes nem comida. Mas era bom, ótimo. Especialmente pelo fato de eu escutar a conversa dos garçons, que conhecia de oi e tchau, mas de quem nunca soube os nomes. Fiquei sabendo que eram universitários da área de humanas, a maioria do curso de letras. A cada semana, dez, quinze dias, discutiam exaustivamente uma questão. Depois mudavam de assunto.
Lembro como se fosse há poucos minutos, mas já faz tanto tempo, do debate a respeito de bar, boteco, botequim ou, como um deles definiu, bodega.
O Garçom A disse que bar é o último refúgio dos canalhas. Último não, contestou o Garçom B: boteco, para ele, é o primeiro refúgio de todos os canalhas, pulhas e picaretas. O Garçom C discordou dizendo ter certeza de que todo botequim, bodega, baiúca que seja, não passa de um para-raio de gente chata, carente e careta, mesmo quando o frequentador se apresenta como hipster, beatink ou muito louco. “Vampiros também costumam frequentar boteco”, acrescentou o Garçom C.
Nunca concordei com o que eles falaram sobre bar, até porque frequento bares e não me considero canalha, pulha, picareta, carente, careta ou chato, apesar de que alguém pode me definir com alguma ou até mais de uma dessas palavras. Agora, não sou e jamais serei hipster, beatnik e muito louco. E vampiro? Acho que não sou, mas não tenho certeza.
Mesmo não concordando, e talvez até por causa disso, apreciava ouvir aqueles confrontos verbais dos garçons. Um deles, possivelmente o Garçom D, afirmou que chato mesmo era encontrar no boteco a chamada turma da firma. “Sabe aquele pessoal que trabalha na mesma empresa e vai tagarelar e emitir perdigotos no happy hour? São os piores. Festival de sorrisos falsos, flatulência dissimulada, um querendo sacanear o outro, uns desejando comer outros e outras. Turma da firma no boteco é uma definição do que pode ser o inferno”, disse o Garçom D.
Então, após ouvir durante mais de uma semana os garçons do Café & Restaurante Trem Pagador falarem mal de boteco, lembrei do Binaca. O mau hálito dele era um dos piores do mundo, talvez o mais fedido.
Bebeu diariamente por décadas, alguns de seus dentes estavam podres e ele devia sofrer de outro mal além da diabetes mal tratada, que o fazia o chorar.
O Binaca dizia ser um amante de bar com alma. “Com cadeira, cerveja de garrafa e copo americano”. Dessa e de outras maneiras, todas confusas e incompletas, tentava definir o que poderia ser a alma de um bar.
Se o Binaca encontrasse aqueles garçons? Haveria briga. Só não encontrou, nem vai encontrar, porque morreu, justamente, em um boteco, onde, de acordo com testemunhas, repetia exaustivamente o seu mantra: “Du caralho, du caralho!” Incapaz de elaborar comentários, por limitação de repertório ou preguiça, definia tudo o que admirava com essas duas palavras: “du caralho”. E, já deitado e tremendo, com algo parecido com espuma saindo de sua boca, o Binaca teria dito pouco antes de morrer uma frase que as testemunhas e o dono do bar não compreenderam, mas anotaram: “Não fui nada, nunca fui nada e eu queria tanto ser o Dinho”.



Conto inédito, de minha autoria, publicado na edição 210, abril de 2019, da revista Ideias. Ilustração de Vitor Mann.

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