Um amigo chamado Wilson Martins
Entrevistar Wilson
Martins. Esse seria o meu teste para conseguir uma vaga na Top
Magazine que passaria a circular em Curitiba a partir de abril de
1999. Eledovino Basseto Júnior, um dos mais competentes jornalistas
em atividade na época, coordenava a transição da revista de Ponta
Grossa para a capital paranaense. Na realidade, eu iria acompanhar o
Eledovino na entrevista. E, às 10h de uma manhã de março, chegamos
a um prédio na Avenida João Gualberto, no bairro Cabral, para o
compromisso.
O
Eledovino fez uma pergunta, no máximo duas, e quase não falou mais
nada, observando com atenção, admirado, a conversa entre o Wilson
Martins e eu. O resultado? O conteúdo, inicialmente previsto para
ser um item secundário, foi para a capa da revista, com o título
“Wilson Martins, um profissional da leitura”.
O
crítico não disse nada que não tivesse contado em outras
entrevistas realizadas anteriormente. No entanto, a maneira segura de
enunciar, tudo, provocou impacto, em mim, e também no Eledovino.
Martins falou do seu interesse por leitura, desde menino — “às
vezes penso que li todo o acervo da Biblioteca Pública do Paraná”,
comentou a respeito de seu método — “a minha fórmula é ler
deitado: o livro que te adormece, nas dez primeiras páginas, não
presta”, definiu a sua atividade — “o crítico é um sujeito
que sabe ler e ensina os outros a ler”, entre outros assuntos.
Gravei
a conversa, em um gravador de fita K-7, e ao transcrever, escutava,
mais de uma vez, o depoimento daquele sujeito que falava com absoluta
calma, demonstrando conhecer, a fundo, o seu ofício. Ele defendia
teses que poderiam provocar polêmica até hoje. Era, por exemplo,
contra o Estado financiar artistas. “Não há exemplo de grande
escritor, em qualquer lugar do mundo, que tivesse dependido do
incentivo externo para se expressar. Quem tem algo para fazer, faz. O
iniciante, inclusive, precisa de obstáculos e desafios.”
A
esposa de Martins, Ana, nos ofereceu suco de tomate, torradas, chá e
café, mas o Eledovino e eu aceitamos, cada um, um copo de água e
nos despedimos após duas horas de conversa.
Quando
a Top Magazine, com uma foto do crítico na capa, saiu da
gráfica, deixei cinco exemplares na portaria do prédio dele, e
também um bilhete com o número do meu telefone, caso houvesse
problemas no texto — ele poderia solicitar uma errata na edição
seguinte.
Wilson
Martins me telefonou.
Agradeceu
por eu ter sido fiel a tudo o que ele disse. Não entendi e comentei
que a obrigação do jornalista é publicar exatamente o que o
entrevistado fala. Ele riu. E disse que é comum o repórter
distorcer as palavras de quem concede entrevista.
Em
1938, em Ponta Grossa: Martins era o editor do jornal Diário
dos Campos. Crédito: Arquivo pessoal do
crítico.
Brasil
diferente
Foi
possível participar ainda de mais uma edição da Top Magazine,
que mudaria o nome para Top View e teria outra linha
editorial, diferente do projeto jornalístico idealizado pelo
Eledovino Basseto Júnior. Então, por interferência de Jamil Snege,
o Miguel Sanches Neto conseguiu uma oportunidade para eu trabalhar na
Imprensa Oficial do Paraná que, em 1999, dava início a um projeto
editorial chamado Brasil diferente, em alusão a Um Brasil
diferente, livro de Wilson Martins sobre o Paraná.
De 1999 a 2002, seriam publicados mais de 100 títulos, entre os quais a reedição fac-similar da revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan entre 1946 a 1948; Contos reunidos, de Newton Sampaio, e A linguagem prometida, de Sérgio Rubens Sossélla.
De 1999 a 2002, seriam publicados mais de 100 títulos, entre os quais a reedição fac-similar da revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan entre 1946 a 1948; Contos reunidos, de Newton Sampaio, e A linguagem prometida, de Sérgio Rubens Sossélla.
Aquele
primeiro contato com Martins teria, inesperadamente, continuidade.
Ele
foi o consultor para a edição dos diários do crítico Temístocles
Linhares (1905-1993). Os manuscritos renderam seis volumes da série
Diário de um crítico. Além de decifrar a escrita do autor,
foi necessário resolver outro impasse. Nos diários, Linhares
comentava sobre a sua rotina, mas também mencionava questões da
vida literária e nunca escreveu um nome por extenso, apenas
iniciais. Diante de um A. C., às vezes havia dúvida se a
personalidade citada era Antonio Candido ou Antonio Callado. Então,
era necessário consultar Wilson Martins.
Comecei
a frequentar o apartamento de Martins, principalmente para levar ao
crítico os diários do Temístocles Linhares. Aproveitava os
encontros para comentar as críticas que ele escrevia, publicadas
toda semana nos jornais O Globo e Gazeta do Povo.
Terminava a leitura de um texto dele com muitas informações, não
apenas sobre um livro e um autor, mas também sobre o período que
determinado escritor viveu e escreveu a sua obra, sobretudo quando
Martins comentava algum relançamento.
“É
necessário conhecer todo o panorama de uma época, o contexto
social, político e religioso de um local onde uma obra foi escrita.
Também não dá para fazer um julgamento do passado com base nas
ideias atuais. É preciso, enfim, muita cultura para não dizer
bobagem”, disse Martins, durante aquele primeiro encontro. E,
durante o convívio, percebi que ele colocava o discurso em prática.
O
projeto Brasil diferente foi um sucesso, jornais e revistas de todo o
país publicaram reportagens sobre a coleção de livros, ainda hoje
lembrada e festejada por alguns. 2002 seria o último ano do segunda
mandato de Jaime Lerner à frente do governo do Paraná; portanto,
não havia nenhuma possibilidade de os integrantes da equipe de
Miguel Sanches Neto, diretor-presidente da Imprensa Oficial,
continuarem no órgão público. Martins e Sanches Neto sugeriram que
eu fizesse mestrado para ampliar os conhecimentos e também por causa
do título. Segui a recomendação deles, fiz a prova na Universidade
Federal do Paraná (UFPR), fui aprovado e um novo ciclo se abria para
mim, no qual Martins estaria, outra vez, presente.
Grandes
nomes da literatura brasileira, como Jorge Amado, dialogavam Wilson
Martins. Crédito: Arquivo pessoal do crítico.
A
academia ou o deboche?
Além
do mestrado, a partir de 2003 passei a atuar na Travessa dos
Editores, outro emprego intermediado por Jamil Snege. Se durante as
manhãs eu tinha o imaginário povoado por um discurso acadêmico,
depois do meio-dia era o momento de conviver com Fábio Campana,
Wilson Bueno e Snege, um trio que teve formação autodidata e, até
por isso, três sujeitos de mentalidade antiacadêmica.
Campana, Bueno e Snege eram incendiários, caóticos, debochados, irreverentes e desconstrutores, inclusive de biografias alheias. Exatamente o oposto do que eu encontrava nas salas de aula e nos corredores da universidade. Acima de tudo, o trio era generoso. Eles me incentivavam a publicar ficção, que comecei a mostrar na revista ETC, da Travessa dos Editores, e nas páginas do jornal Rascunho, para onde produzi resenhas por dez anos.
Entre os dois mundos, a UFPR e a Travessa dos Editores, continuei em contato com Wilson Martins. Por telefone e pessoalmente. Quase todos os dias. E, apesar da proximidade, sentia vergonha, medo mesmo, de desenvolver algum discurso a respeito do universo literário diante dele. Wilson Martins era o sujeito que havia lecionado na UFPR e, de 1965 a 1991, foi professor titular de literatura brasileira na Universidade de Nova York. O mestre da crítica pesquisou por anos antes de escrever obras como História da inteligência brasileira, dividida em sete volume e mais de três mil páginas — um amplo estudo a respeito da manifestação cultural em nosso país, além de A crítica literária no Brasil e O modernismo — em segunda edição com o título A ideia modernista.
Diante de Martins, a quem sempre chamei de senhor Wilson, havia reverência.
Tinha a impressão de que ele conhecia todos os livros e todos os autores, e isso se confirmava a cada novo encontro. Ao citar, aleatoriamente, o nome Marques Rebelo, ele lembrava e discutia Oscarina, coletânea de contos do célebre autor carioca, atualmente pouco lembrado pelos jornalistas culturais. Quando Amilcar Bettega lançou Deixe o quarto como está, Martins avaliou positivamente o livro e me disse que o escritor gaúcho tinha algo dentro de si: “Esse é um autor, não tenho nenhuma dúvida. Preste atenção no que ele escreve.”
Martins me ajudou, por meio de conversas e sugestões de leitura, no processo da dissertação de mestrado, que defendi em 2005, e também em outras situações. Quando acabou a minha temporada na Travessa dos Editores, no final de 2007, fiquei sem saber para onde ir. “Vá até a Praça Carlos Gomes [endereço da Gazeta do Povo], peça para falar com a Ana Amélia Filizola [uma das proprietárias], se apresente e ela irá te contratar.” Essa foi a sugestão dele. Não sei se eu conseguiria realizar o que o crítico, e naquele contexto, já um amigo, recomendou. Mas um encontro com José Carlos Fernandes, um dos mais importantes jornalistas da Gazeta do Povo, na Rua XV, no centro de Curitiba, faria com que eu tivesse acesso a três anos e alguns meses dentro da redação do mais importante jornal paranaense.
Campana, Bueno e Snege eram incendiários, caóticos, debochados, irreverentes e desconstrutores, inclusive de biografias alheias. Exatamente o oposto do que eu encontrava nas salas de aula e nos corredores da universidade. Acima de tudo, o trio era generoso. Eles me incentivavam a publicar ficção, que comecei a mostrar na revista ETC, da Travessa dos Editores, e nas páginas do jornal Rascunho, para onde produzi resenhas por dez anos.
Entre os dois mundos, a UFPR e a Travessa dos Editores, continuei em contato com Wilson Martins. Por telefone e pessoalmente. Quase todos os dias. E, apesar da proximidade, sentia vergonha, medo mesmo, de desenvolver algum discurso a respeito do universo literário diante dele. Wilson Martins era o sujeito que havia lecionado na UFPR e, de 1965 a 1991, foi professor titular de literatura brasileira na Universidade de Nova York. O mestre da crítica pesquisou por anos antes de escrever obras como História da inteligência brasileira, dividida em sete volume e mais de três mil páginas — um amplo estudo a respeito da manifestação cultural em nosso país, além de A crítica literária no Brasil e O modernismo — em segunda edição com o título A ideia modernista.
Diante de Martins, a quem sempre chamei de senhor Wilson, havia reverência.
Tinha a impressão de que ele conhecia todos os livros e todos os autores, e isso se confirmava a cada novo encontro. Ao citar, aleatoriamente, o nome Marques Rebelo, ele lembrava e discutia Oscarina, coletânea de contos do célebre autor carioca, atualmente pouco lembrado pelos jornalistas culturais. Quando Amilcar Bettega lançou Deixe o quarto como está, Martins avaliou positivamente o livro e me disse que o escritor gaúcho tinha algo dentro de si: “Esse é um autor, não tenho nenhuma dúvida. Preste atenção no que ele escreve.”
Martins me ajudou, por meio de conversas e sugestões de leitura, no processo da dissertação de mestrado, que defendi em 2005, e também em outras situações. Quando acabou a minha temporada na Travessa dos Editores, no final de 2007, fiquei sem saber para onde ir. “Vá até a Praça Carlos Gomes [endereço da Gazeta do Povo], peça para falar com a Ana Amélia Filizola [uma das proprietárias], se apresente e ela irá te contratar.” Essa foi a sugestão dele. Não sei se eu conseguiria realizar o que o crítico, e naquele contexto, já um amigo, recomendou. Mas um encontro com José Carlos Fernandes, um dos mais importantes jornalistas da Gazeta do Povo, na Rua XV, no centro de Curitiba, faria com que eu tivesse acesso a três anos e alguns meses dentro da redação do mais importante jornal paranaense.
Wilson
Martins com Joaquim Inojosa, Plínio Doyle, Américo Jacobina
Lacombe, Raul Bopp e
Carlos Drummond de Andrade no Rio de Janeiro em
1964. Crédito: Arquivo pessoal do crítico.
Adeus, mestre — e amigo
O
crítico foi secretário de redação do Diário dos Campos,
de Ponta Grossa, em 1938. Ele comentou, mais de uma vez, que
trabalhar dentro de um jornal ajuda a conhecer o ser humano, pelo
fato de haver muitas pessoas, e vaidades, uma muito próxima da
outra, atuando sob pressão. Fiquei três meses no noticiário geral,
outros três na política e, em seguida, fui admitido na equipe do
Caderno G.
Em alguns sábados, dividi a mesma página do caderno de cultura com o mestre. As resenhas que eu fazia sobre livros de autores brasileiros eram publicadas aos domingos e diariamente saía pelo menos uma matéria minha no jornal. Martins telefonava para comentar os textos. Em 2008, fui a Paraty fazer a cobertura jornalística da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o que rendeu inúmeros textos e elogios do crítico — ele disse que realizei um trabalho razoável (ou honesto?, não lembro) no badalado evento literário.
Alguns textos de Martins começaram a apresentar problemas, mínimos, durante 2009. Nada grave, mas, por exemplo, determinados raciocínios não se completavam. Nas conversas com o crítico, tudo parecia normal. Mas um amigo comentou que ele poderia estar doente. Então, a editora-executiva do Caderno G, a jornalista Marleth Silva, pediu para eu começar a pesquisa e as entrevistas para a homenagem póstuma.
O poeta e ensaísta Affonso Romano de Sant'Anna me disse, quando o procurei para dar um depoimento sobre Martins, que ele também recebeu uma encomenda similar, no caso, a respeito de Carlos Drummond de Andrade. Sant'Anna comentou que era complicado conversar diariamente com Drummond e ao mesmo tempo preparar o obituário dele. Eu fazia o mesmo.
31 de janeiro de 2010, um domingo. Oscar Röcker Netto, o chefe de redação da Gazeta do Povo, me telefona. Eram 8 horas. Wilson Martins havia morrido no dia anterior, 30 de janeiro, às 20h55. Eu estava de plantão. Röcker Netto me informou onde o corpo estava sendo velado, e fui até o Cemitério Luterano de Curitiba. Passei algumas horas no velório, entrevistei parentes e amigos de Martins e, então, segui para a redação da Gazeta do Povo.
Duas
páginas do primeiro caderno estavam reservadas, além da chamada na
capa. Eu havia preparado linha do tempo, com a cronologia da vida e
obra de Martins. Apesar do impacto emocional, foi possível organizar
as informações e os depoimentos, entre outros, de Alcir Pécora,
André Sefrrin, Ivan Junqueira e Moacyr Scliar. Consegui escrever
quatro textos em menos de quatro horas.
No
dia seguinte, 1º de fevereiro, li na edição impressa o material.
Escrevi que ele foi um dos últimos intelectuais que pensaram a
cultura de forma ampla, e não generalista, no Brasil. Ressaltei que
Martins buscou independência para escrever o que pensava e, para
isso, evitou conviver com escritores. Também fiz questão de lembrar
que, nos 88 anos em que viveu, 70 foram dedicados a ler e a tentar
compreender o fenômeno literário. Faltou contar, na reportagem, que
ele era gentil e um conversador agradável, tinha senso de humor
incomparável e que, para mim, foi um grande — e insubstituível —
amigo.
Reprodução
de parte do especial que a Gazeta do Povo
publicou no dia 1.º de fevereiro de 2010:
homenagem ao mestre da
crítica. Crédito: Reprodução.
Texto publicado originalmente na edição 33, de abril de 2014 do jornal Cândido.
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