A crítica em crise

Ilustrações de Marcelo Cipis.

Em 2014, há crítica literária no Brasil? Existem diferentes e conflitantes respostas para a questão. O professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Eduardo Sterzi afirma que talvez nunca tenha existido tanta crítica literária no Brasil como no tempo presente. Para justificar o ponto de vista, ele apresenta uma lista mostrando onde é possível encontrar crítica literária: livros, revistas ditas acadêmicas, revistas literárias não acadêmicas, revistas de cultura em sentido amplo, jornais alternativos como o Atual ou o Tabaré, panfletos — como o Sopro, publicado pela editora Cultura e Barbárie, sites dedicados à literatura, blogs, redes sociais, etc.
Já Alcir Pécora, a exemplo de Sterzi, também professor de teoria literária na Unicamp, tem outro entendimento a respeito do assunto. Pécora acredita que a crítica literária — no sentido de juízo estético argumentado e sistemático de textos literários de várias épocas e lugares — está quase em extinção. “Na universidade, a tendência é mais para a pesquisa de fontes e o mapeamento histórico, de um lado, e para a teoria, de outro. No jornal, a crítica tende a ecoar os releases das editoras que, obviamente, estão restritos a lançamentos do mercado”, diz, completando que, neste momento — pelo fato de o mercado editorial pautar as avaliações — bem mais do que críticos, o que existe são os colunistas literários, meros intermediários entre as editoras e os cadernos de cultura.
Os argumentos de Sterzi e de Pécora, apesar de quase opostos, são coerentes e apontam para uma outra questão: há uma crise, uma mudança no segmento. Sterzi não acredita que a crítica literária esteja sumindo. Para ele, o que está desaparecendo é o espaço para a crítica nos meios tradicionais, como jornais e revistas. “Como esse fechamento do espaço vai de par com a progressiva perda de importância desses jornais e revistas no debate público sério, talvez não seja algo a se lamentar com grandes ênfases. Não se trata de uma crise da crítica, mas uma crise da imprensa comercial”, opina Sterzi, também autor dos livros de poesia Prosa e Aleijão.
José Castello tem noção dessa mudança que a internet provocou na crítica. “Não podemos avaliar a produção da crítica literária considerando apenas a mídia impressa. Hoje existem outras plataformas, igualmente dignas de respeito”, comenta o sujeito que é escritor, autor do romance Ribamar, e há sete anos titular de uma coluna de crítica literária publicada todo sábado no suplemento Prosa&Verso do jornal O Globo, além de manter um blog de literatura no Globo On Line.

Capa do extinto suplemento Ideias do Jornal do Brasil, um dos destaques do 
jornalismo brasileiro durante a década de 1990. 

Outro tempo de pensar o país
De um fato não há dúvida, nem discordância: durante os séculos XIX e XX, e nos primeiros anos do século XXI, os impressos abriam mais espaço para crítica, não apenas literária, mas também de teatro, cinema e televisão. Alcir Pécora tem uma explicação para o fato: “Havia mais espaço para, por exemplo, crítica literária nos séculos XIX e XX porque ela, a crítica, estava associada, de um lado à construção do estado nacional; de outro, estava associada a valores universais seguros, que permitiam uma ampla base de acordo nas avaliações estéticas.”
O professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Marcio Serelle tem uma avaliação do assunto similar à de Pecora. Ele acrescenta que a crítica literária já esteve melhor, do que é hoje, porque a literatura já esteve melhor — no sentido de que sua forma de mediação era central nas sociedades ocidentalizadas. “A cultura do livro era nodal para a intelectualidade e, muitas vezes, a entrada pelo literário era uma forma de pensar, no país, não apenas os aspectos estéticos concernentes a essa arte, mas a própria sociedade”, argumenta Serelle, doutor em teoria e história literária pela Unicamp.
A escritora Noemi Jaffe, também autora de textos críticos, observa que, no passado, além de mais espaço para crítica nos jornais, havia mais tempo para a leitura de artigos, cartas — “havia cartas” — e críticas. “Isso muda todo o ambiente crítico, porque tempo e espaço são fundamentais. Também tenho a impressão de que, anteriormente, os pares literários resistiam melhor às leituras dos colegas, mesmo se fossem negativas. Mas o que diferencia ontem de hoje tem a ver com a ideia de tempo maior [no passado]”, comenta Noemi.
Do passado, José Castello cita Otto Maria Carpeaux e Alvaro Lins (leia mais nas páginas XX), para ele, referências no que diz respeito à crítica literária. “Em vez de falar do passado, prefiro falar de hoje”, sugere Castello. Ele salienta que os críticos de formação mais densa continuam a ser importantes referências em meio ao grande burburinho que emana da mídia e, em especial, da mídia eletrônica. “Quanto mais disperso se torna um cenário, e a internet hoje é o lugar da dispersão, mais importante se torna termos algumas referências sólidas a que se apegar”, analisa Castello, citando Silviano Santiago, Flora Süssekind, Beatriz Resende, Davi Arrigucci, Leyla Perrone-Moisés, João Cezar de Castro Rocha e Luiz Costa Lima como nomes relevantes da crítica atual.

José Castello: titular de uma coluna publicada aos sábados em O Globo. Foto: Kraw Penas.

E o efeito da crítica?
O impacto da crítica, comentam os estudiosos, é relativo. Marcio Serelle, da PUC-Minas, apresenta dois exemplos para comprovar a tese. No início de seu percurso literário, Murilo Rubião (1916-1991) foi criticado por Alvaro Lins, o chamado “imperador” da crítica, que fez restrições ao escritor mineiro, apontando imperfeições que comprometeriam a obra do autor. Os comentários negativos, observa Serelle, não impediram que Rubião fosse, aos poucos, reconhecido — atualmente ele é considerado um dos grandes nomes da literatura brasileira.
“Tudo depende do chamado 'horizonte de expectativa' de uma época que, às vezes, é incapaz de identificar, em determinada obra, qualidades que serão reconhecidas posteriormente. Como a recepção de uma obra e de um autor é constantemente atualizada, esse movimento pode redirecionar a avaliação crítica de um escritor”, afirma Serelle.
O estudioso da PUC-Minas também recorre a um caso recente, o do escritor Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, romance bem recebido pelo crítico Roberto Schwarz. “Mas essa boa recepção não impediu que outras críticas, não tão positivas, fossem publicadas posteriormente, num processo de reavaliação da obra”, diz Serelle, acrescentando que a obra de Paulo Lins se afirmou em nossa cultura por causa do cinema — do filme Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles.
Noemi Jaffe, por sua vez, avalia que uma crítica negativa, mesmo publicada em um veículo de ampla circulação, não é capaz de destruir e, se for positiva, também não é suficiente para alavancar uma carreira literária. Já Eduardo Sterzi analisa que o impacto da crítica depende de quem assina o texto crítico. “Quando o Luiz Costa Lima, o Roberto Schwarz ou a Flora Süssekind escrevem sobre determinado livro, a ressonância continua sendo bem grande, inclusive no plano jornalístico. De resto, constato que, a cada dia, há uma separação maior entre os livros destacados pela crítica jornalística na literatura contemporânea e os livros destacados pela crítica universitária”, afirma Sterzi.
Essa separação entre crítica jornalística e acadêmica é recorrente no discurso de quem estuda o assunto. Serelle explica que a crítica de jornal tem a função de avaliar as obras em circulação e de servir como farol orientador para o leitor. Já a acadêmica, que em um primeiro momento não tem compromisso com o padrão jornalístico, não precisa — necessariamente — tratar de obras nem de autores contemporâneos e pode ser mais extensa, reflexiva e aprofundada do que as resenhas jornalísticas.
Alcir Pécora garante que essas divisões existem mas, na prática, não esclarecem nada sobre a questão crítica propriamente dita. “Tanto a crítica universitária quanto a de jornal se encontram num momento ruim”, analisa. O especialista da Unicamp afirma que a crítica universitária vai mal porque, na falta de paradigmas seguros de crítica e com a banalização dos estudos culturais e identitários, ela tende, de um lado, aos mapeamentos de tom neutro e testemunhal e, de outro, à teoria poetizante — que se diz em voz baixa, como reza ou missa de neófitos e convertidos. Já a crítica jornalística, como ele costuma repetir, não passa de colunismo literário — ou seja, badalação das “apostas” das grandes editoras.

Eduardo Sterzi questiona os jornais tradicionais e acredita na força da internet. Foto: Reprodução.

Compreender ou julgar?
Eduardo Sterzi entende que a crítica tem de conferir inteligibilidade ao seu assombro diante de determinadas obras. “Isto é, compreender, ou pelo menos esforçar-se para compreender, especialmente aquilo que a princípio parece incompreensível, porque desordena nossas concepções até agora preponderantes de literatura, obra, texto, forma e autoria”, diz Sterzi, para quem um crítico não deve, jamais, pôr o ato de julgar à frente do esforço para compreender.
Alcir Pécora concorda com Sterzi nesse ponto: o crítico precisar estar mergulhado no legado cultural e, ao mesmo tempo, não formular juízos sem, antes, descobrir o decoro próprio das obras que examina. Mas Pécora faz uma ponderação. “Essa dupla submissão nada tem de servil: não se trata de falar bem sempre. Isso é papel do colunista literário. O crítico se submete ao objeto para descobrir como foi produzido e para avaliá-lo no conjunto do legado cultural efetivamente existente. Se a obra não apresentar novidade em relação a esse legado, deve ser desqualificada como obra de arte”, afirma Pécora.
O veterano professor da Unicamp também é conhecido pelos textos publicados na Folha de S.Paulo e na revista Cult, em geral, conteúdos que esquentam a temperatura da edição devido à exigência do crítico — ele raramente avalia positivamente, por exemplo, uma obra de um autor brasileiro contemporâneo. “Não tenho critérios absolutos ou pré-determinados. Para a Folha, salvo casos excepcionais, nem eu sugiro, nem alguém solicita: eu escolho escrever sobre uma obra entre as possibilidades apresentadas pelo responsável pela seção de livros. Mas, em geral, o responsável, quando me conhece bem, já me sugere livros que estão no horizonte daqueles que eu gostaria de fazer”, afirma Pécora, explicando o seu processo de seleção de títulos para comentar na imprensa.
José Castello diz se pautar pela agenda dos lançamentos editoriais. “No mais, meu critério para escolher um livro é, antes de tudo, pessoal. Recebo muitos livros e, é claro, não teria tempo para ler todos eles. Folheio, sondo, busco um fio que me interesse e então o sigo”, conta. O crítico do jornal O Globo afirma que negocia as suas escolhas com a editora do Prosa&Verso, Manya Millen. E, mais do que tudo, Castello faz questão de ressaltar a sua condição de leitor comum. “Em minhas críticas faço o relato de minha leitura pessoal. Como se eu fizesse uma viagem à Ásia e depois escrevesse uma carta para meu leitor relatando o que vi, o que senti, no que pensei, que imagens vieram à minha mente”, diz, definindo a sua maneira de escrever crítica literária.
Pécora lembra, ainda, que um crítico só não poder ser estúpido, desonesto e ignorante, “o que é absolutamente facultado ao artista. Vários grandes [artistas] foram isso tudo, com todos os méritos.” E Eduardo Sterzi, mais do que enunciar, faz uma pergunta que — por que não? — , pode definir a atividade de um crítico: “Não será a crítica literária também uma modalidade de ficção?”.

Matéria publicada na edição 33 do Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná. 

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