Bia
Beatriz
foi chamada de Bea até a adolescência e, depois dos dezoito, é a Bia, a mesma
que agora segue como se fosse uma suicida em cima de uma bicicleta em meio ao
trânsito do centro. Motoristas tiram fina, ônibus quase a atropelam enquanto
ela pedala. É bióloga em uma empresa que paga o seu salário com o dinheiro da
venda de perfumes – ela atua na área de proteção ambiental.
São 9:24.
Bia acordou atrasada. Ontem, entrou no
Face só pra ver se havia alguma mensagem e ficou mais de uma hora. Os seus amigos
e conhecidos da internet estão cada vez mais agressivos – ela pensou nisso ao
desligar o computador. Abriu uma garrafa de vinho tinto e pegou um caderno. Um
brinde, desejou a si mesma, antes de escrever o nome dos treze homens e quinze
mulheres com quem ficou nos últimos três, quatro anos.
Um entregador de encomendas, dirigindo uma moto, quase faz
Bia cair da bicicleta. Ela escuta e canta People
are strange, do Doors.
São 9:36.
Se não houver imprevisto, vai escutar Honey, do Moby, Pur, do
Cocteau Twins, Um dia comum (em SP),
do Suba e Epistrophy, do Thelonious
Monk. Estão em sequência no aparelho portátil que armazena faixas musicais que
ela ganhou do Guga, um carinha, gordinho, que conheceu em janeiro.
Bia ganhou bodes em uma rifa, alugou espaço em um sítio e
começou uma criação. Os caprinos se reproduziram, ela nem lembrava mais dos
bichos, mas estava frequentando a macumba chique e, lá, alguém precisava de
bodes para uns trabalhos.
A bióloga passou a fornecer
bodes pra macumba. Quem pedia era o Douglas, um produtor cultural que sempre
vestia, literalmente, a camisa dos projetos, onde quer que estivesse. Inclusive
no terreiro. Quando tinha equipe de jornalismo, ele dava entrevista por,
naquele momento, e geralmente apenas naquela situação, receber alguma entidade.
Bia começou a perder a fé naquilo, na macumba, por causa das performances do
Douglas. Uma noite, ele a convidou pra sair. E brochou. Mas isso faz tempo.
Agora, já são 10 horas.
Chove. Bia tem
a impressão de que há mais carros nas ruas do que nos outros dias. Ela lê no
muro a frase “Uma mulher sem homem é como um peixe sem uma bicicleta”. Consegue
identificar o nome da autora da frase: Gloria Steinem. Se estivesse caminhando
e com papel e caneta, anotaria aquilo. Também poderia tirar uma foto com o
celular. Mas não. Tem pressa. E não entendeu o que a autora quis dizer.
Bia segue.
São 10:17.
A bióloga
entrou em uma avenida que faz com que ela fique cada vez mais longe do
escritório. Hoje Bia não vai trabalhar. Isso ela decidiu agora. Existe outra
urgência. Conversar com Anita, a DJ, a que sempre tem uma frase, “não vá para a
cama no primeiro encontro” ou “nunca deixe perceber que o jogo está ganho”.
Anita e Bia foram para a cama no primeiro encontro e a bióloga nunca escondeu
que, desde a primeira troca de olhares, estava a fim da DJ.
“No amor, as
mulheres são profissionais; os homens, amadores”. Anita enviou essa frase do
Truffaut para Bia pelo Face. A bióloga lembra disso enquanto pedala e gostaria
de sussurrar, neste instante, para a DJ: “Que bom. Então, vamos aproveitar o
nosso profissionalismo?”
Bia sorri.
Conto
publicado originalmente na Ideias de
abril de 2014. Ilustra de Osvalter Urbinati.
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