O nome disso é uma década
Escrevi reportagem sobre a mais recente década e os 10 anos do Cândido,
conteúdo especial da 121ª
edição do jornal da Biblioteca Pública do Paraná, confira:
O nome disso é uma
década
Busca por inclusão,
protagonismo feminino e turbulências no mercado editorial marcaram os últimos
dez anos na literatura brasileira, período em que o Cândido existe repercutindo
essas transformações
Marcio Renato dos Santos
A década que teve início em 2011 e chega a 2021 colocou em pauta questões como
racismo, machismo, fascismo, sexismo, preconceitos, transfobia e desigualdade
social. "Foram anos mais combativos, de denúncia, de chamar as coisas pelo
nome, um claro reflexo das convulsões políticas e sociais do país, um movimento
de dizer basta", diz Carlos Henrique Schroeder, autor do romance As Fantasias Eletivas (2014).
Em circulação desde
agosto de 2011, o jornal da Biblioteca Pública do Paraná vem repercutindo
debates urgentes e temas incontornáveis por meio de reportagens, ensaios
e entrevistas, além de publicar narrativas, poemas, fotos e ilustrações de
parte significativa de autores e autoras em atividade no país.
Schroeder acrescenta que
a década, sem exagero, foi horrível para o Brasil, mas muito importante para a
literatura. "Com uma multiplicidade de vozes impressionante, de todos os
cantos do país. Acho que o Brasil finalmente se conheceu, literariamente",
opina o escritor catarinense.
Já Cíntia Moscovich
desconfia que a década não tenha sido especialmente frutífera para a poesia e a
prosa. Na avaliação da escritora gaúcha, a temporada abriu espaço para
confrontos políticos e de reafirmação (ou tentativa) de liberdades individuais
— e a literatura andou a reboque de algumas causas, como a luta contra o
racismo, contra a discriminação dos LGBTQIA+ e a favor de dar abrigo a
"essa enorme massa de gente que precisou se refugiar".
Cíntia reconhece que
sempre houve causas no mundo. "Mas nunca [como na última década] me
pareceu que os autores se engajaram tanto e sem medir as consequências de
vender a alma. O pior caminho para a literatura é o engajamento", diz a
autora da coletânea de contos Essa Coisa Brilhante que É a Chuva (2012).
O que poetas e
prosadores fazem como pessoas físicas, Cíntia acrescenta, e como seres sociais,
como ativistas, é do interesse da sociedade, mas, ela adverte, isso nem sempre
cai bem na arte. "A expressão artística serve para outra coisa, e não como
cavalo de batalha da luta da vez", enfatiza.
Atento a debates
recentes, o escritor e poeta carioca Henrique Rodrigues critica o badalado
"lugar de fala" — que, resumidamente, é como se define o local de
quem enuncia determinado conteúdo. "Há um grande equívoco, por exemplo, na
aplicação do famoso conceito de 'lugar de fala' na prática literária. O que
deveria abrir caminhos se tornou um tipo de patrulha, cerceamento e dedos
apontados, contrariando o próprio sentido de alteridade que é a base do fazer
literário", opina Rodrigues, autor do romance O Próximo da Fila (2015).
Potência feminina
O professor da UFPE
Lourival Holanda considera o saldo literário dessa década positivo. Ele destaca
a produção das vozes femininas (tema de capa das edições 18 e 116 do Cândido),
especialmente Alice Sant’Anna, Aline Bei, Ana Martins Marques, Cida Pedrosa e
Tatiana Salem Levy — "nomes, entre algumas, que certamente vão
ficar".
Em sintonia com o ponto
de vista do intelectual pernambucano, Carlos Henrique Schroeder diz que os
melhores livros publicados nessa última década foram escritos por mulheres.
Entre alguns dos mais relevantes títulos, ele chama atenção para Olhos
D’Água, (2014), de Conceição Evaristo, Quarenta Dias (2014),
de Maria Valéria Rezende, Como se Estivéssemos em um Palimpsesto de
Putas (2016), de Elvira Vigna, O Peso do Pássaro Morto (2017),
de Aline Bei, e as obras de Marília Garcia, Ana Martins Marques e Isadora
Krieger — além do legado de Victor Heringer (1988-2018).
Já o poeta gaúcho Ronald
Augusto, autor de Cair de Costas (2012), aponta Edimilson de
Almeida Pereira, Angélica Freitas e Ricardo Aleixo, além da já citada Conceição
Evaristo, como algumas das mais potentes vozes brasileiras contemporâneas. No
caso da poesia, ele tem a percepção de que o período 2011-2021 se caracterizou
por uma saturação do esteticismo ou por uma suspeição com relação ao gesto de
vanguarda — "Não digo que essa situação seja boa ou ruim". Os poetas,
Augusto analisa, parecem mais dispostos a assumir as suas identidades políticas
por meio do poema.
Turbulências sociais
recentes aparecem, por exemplo, em poemas de O Enigma das Ondas (2020),
de Rodrigo Garcia Lopes. O paranaense radicado em Florianópolis define a década
como terrível para a cultura. "Tem sido difícil encontrar estímulo para
criar, quando o mundo conspira para sua própria destruição", lamenta o
artista que, apesar das adversidades, publicou durante o período a longa
narrativa O Trovador (2013), três livros de poemas e
o Roteiro Literário — Paulo Leminski (viabilizado pela
Biblioteca Pública do Paraná em 2018).
Outros nomes se
destacaram durante a década, entre os quais — Lourival Holanda faz questão de
indicar — José Luiz Passos, Julián Fuks e Paulo Scott. Henrique Rodrigues
acrescenta à lista Jacques Fux, Marcelo Moutinho e Socorro Acioli — eles também
apareceram, publicando inéditos ou como fontes de reportagens, no Cândido.
Autor da recém-publicada
narrativa Discurso sobre a Metástase (2021), André Sant'Anna
associa o seu percurso recente ao jornal da Biblioteca Pública do Paraná.
"Foi para o Cândido que escrevi o texto que iniciou uma série de contos
autobiográficos e determinou toda minha literatura e dramaturgia nesses últimos
dez anos: 'A História da Revolução' (Edição 32). E, depois de várias Histórias,
o ciclo se fecha também no Cândido, com 'A História do André Sant’Anna' (Edição
84). Nesses dez anos e nos próximos que virão, Cândido e eu tâmo junto. Viva os
maluco!", empolga-se o escritor mineiro radicado em São Paulo.
Vitrine viva
Carlos Henrique
Schroeder analisa que os últimos anos consolidaram pequenas e médias editoras
(destaque do Cândido 58), entre as quais Arquipélago, Arte & Letra,
Caiaponte, Dublinense, Moinhos, Nós, Patuá, Reformatório, Relicário, Ubu e
Urutau. Essas casas editoriais, Schroeder explica, conquistaram prestígio e
prêmios, e o que mais importa: leitores. "Acho que todas as grandes
editoras brasileiras perderam espaço, e deixaram de dar uma espécie de
validação compulsória para escritores/as, como acontecia nas décadas
anteriores. Foi o fim do carteiraço editorial", diz.
No início do século XXI,
Cíntia Moscovich observa, o mercado editorial, editoras e
livrarias estavam se mantendo em uma base que ela define como bacana.
"Desculpa falar, mas me parece que houve uma imbecilização geral, os
leitores recuaram — e me recuso a culpar a internet, a Netflix, o que seja. A
matéria humana se empobreceu de um jeito incontornável", lamenta a
escritora gaúcha, uma entusiasta do Cândido: "É sempre um prazer ler,
reler e voltar a consultar, na certeza de que as melhores cabeças estarão lá
[no jornal da BPP] representadas".
A pandemia, Cíntia tem
convicção, foi o tiro de misericórdia no segmento editorial. "Editoras
gloriosas, cujas publicações se lia só na confiança de qualidade e de critério,
hoje a gente olha com desconfiança. Onde estão aqueles editores?",
pergunta a prosadora, completando que atualmente é possível contar nos dedos de
uma mão os verdadeiros editores que resistem no país.
Se Henrique Rodrigues
lembra que o mercado editorial passou e ainda passa por uma crise — e parece
que está sempre "driblando o sistema para sobreviver" —, Lourival
Holanda tem a impressão de que o declínio no setor é resultado do descaso do
governo federal com a cultura: "Houve até um movimento recente para acabar
com a isenção fiscal dos livros — isso é mais que uma desinteligência, é
propósito perverso".
A agente literária
Luciana Villas-Boas lembra que a década 2011-2021 começou com euforia, uma vez
que programas governamentais de aquisição de obras passaram a contar
expressivamente para o caixa das editoras que, para participar do projeto,
deveriam viabilizar lançamentos de ficção brasileira.
Em 2015, a então
presidente Dilma Rousseff — em plena recessão econômica — anunciou a suspensão
dos programas de aquisição de obras literárias. Um dos efeitos, diz Luciana,
foi que os editores, que jamais haviam publicado literatura brasileira para o
mercado, isto é, para a rede livreira, começaram a cortar lançamentos de novos
autores.
"Era risco demais,
que aumentou com a quebra das duas maiores cadeias de livrarias do país, deixando
as editoras com um incomensurável caixa a receber", explica a ex-diretora
editorial da Record, entrevistada pelo Cândido para um projeto com
profissionais do setor (conteúdo da edição 79), que — junto a outras 10
entrevistas — resultou no livro Os Editores, publicado em 2018 pela
BPP.
A crise, então, se
acentuou durante a pandemia. Saraiva e Cultura, as duas cadeias vendedoras de
livros citadas por Luciana Villas-Boas anteriormente, também com lojas
fechadas, não iriam retomar o plano de pagamento de dívidas com as editoras.
"As grandes casas editoriais paralisaram e emudeceram, mas as pequenas,
que não tinham relação com a Saraiva e a Cultura, pois nunca haviam conseguido
dar os descontos exigidos pelas duas empresas, passaram a se mover com mais
desenvoltura, criando novos e interessantes espaços", observa.
Duas notícias, no
entanto, indicam — para a agente literária — a retomada do livro brasileiro no
mercado. A primeira boa notícia, responsável pela segunda, foi a fundação, em
2017, da editora Todavia, liderada por Leandro Sarmatz, Flávio Moura, André
Conti e Ana Paula Hisayama, "que chegaram com olhos bem abertos para a
ficção brasileira" — a nova editora já publicou, entre outros, André
Sant'Anna, Cristovão Tezza, Giovana Madalosso, Joca Reiners Terron e Maria
Esther Maciel, além de traduções (tema de capa da edição 44 e de uma reportagem
da edição 79 do Cândido).
A segunda notícia,
apontada pela agente, foi o sucesso de Torto Arado (2018),
romance de Itamar Vieira Junior — a obra editada pela Todavia já ultrapassou a
marca de 70 mil exemplares vendidos. "Isso provou aos editores que os
leitores não guardam qualquer preconceito contra a literatura brasileira, desde
que o que lhes seja oferecido tenha originalidade e alta qualidade literária",
diz Luciana.
Na onda online
Ronald Augusto observa
que, em relação à poesia, a realidade mercadológica é outra. "Me apresente
uma editora voltada ao gênero que não opere no vermelho e, então, aceitarei a
noção de mercado", comenta, citando Patuá, Ogum’s Toques Negros, Selo
Demônio Negro e Kotter Editorial como empresas que, apesar do inegável pouco
público, seguem publicando poesia.
A Pesquisa Retratos da
Leitura no Brasil, em sua quinta edição, divulgada em 2020, informa que, de
2015 para 2019, os leitores diminuíram no país — anteriormente o índice era de
56%, atualmente 52% dos brasileiros leem. No levantamento mais recente, a média
de livros lidos pelos 8.076 entrevistados, em 208 municípios, está em cinco
títulos por ano, 2,5 deles inteiros e 2,4 em partes — praticamente o mesmo
resultado de 2015.
Apesar das estatísticas,
Lourival Holanda acredita que neste novo regime mais visual, e virtual, as
pessoas estão lendo mais — mas, ele enfatiza, agora a leitura é diferente.
"A velocidade com que as coisas correm nas redes é que prestam serviço e,
também, desserviço à coisa literária, que pede outro ritmo, um tempo de
maturação interior", analisa o professor da UFPE, que define o Cândido
como "teimoso e danado, que resiste, em tempos quase impossíveis, guardando
qualidade".
Jornais e revistas
especializados em literatura, como Rascunho, Suplemento
Pernambuco e 451, já há algum tempo disponibilizam versões
online (totais ou parciais dos conteúdos), além das edições impressas — o
Cândido segue exclusivamente em formato digital integralmente aberto ao
público, com novo projeto gráfico a partir desta edição.
Ronald Augusto tem
convicção de que os suplementos literários online vieram para ficar. "Já
em termos de experimentos (poéticos) com a linguagem, me parece que a internet
não trouxe ainda nenhuma novidade. A poesia do/no Instagram é uma piada",
critica.
Durante a década que
passou, Carlos Henrique Schroeder percebeu que alguns autores conseguiram
viabilizar as suas obras por meio das redes, com pré-venda, crowdfunding e
até a comercialização de exemplares, sem intermediários, com os leitores. Isso,
no entanto, já não funciona (tão bem) em 2021, "já que estamos um tanto
cansados de todas as virtualidades", constata Schroeder.
Apesar do possível
esgotamento diante das telas, apontado pelo escritor catarinense, atividades
literárias como cursos e oficinas de criação sobrevivem no espaço
virtual. Ano passado, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em sua
18.ª edição, e a Flibi (Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná), na
quarta edição, aconteceram exclusivamente a partir de transmissões pela
Internet (confira o especial sobre festas e feiras literárias na edição 41 do
Cândido).
Em relação a feiras e
festas, Cíntia Moscovich analisa que a maior mudança durante esses dez anos foi
a ausência de público decorrente da pandemia. Mas, mesmo antes de 2020, a
autora gaúcha já observava, especificamente, a redução de investimento em
eventos, a exemplo da Feira do Livro de Porto Alegre, realizada há mais de 60
anos e que, Cíntia chama atenção, nunca como nos últimos 10 ou 15 anos sofreu
tanto devido à falta de dinheiro. "O mesmo se pode dizer com relação às
bienais e às feiras de livros do interior: elas passaram a minguar muito",
acrescenta.
Cada vez mais online, os
eventos literários, na avaliação de Lourival Holanda, alargam a superfície
literária configurando oportunidades — até prêmios, como o Oceanos, o Jabuti, o
Sesc, o da Fundação Biblioteca Nacional e o BPP Digital, valem-se, cada um de
um jeito, de possibilidades da Internet.
"A cada tempo, sua
tecnologia, seu suporte, é que determina, direciona a cultura: na pedra, no
papiro, num pen drive, ganha-se na força de divulgação", afirma o
especialista pernambucano, atento ao fato de que nas redes se fala demais, mas
se diz pouco. Como os ventos do Nordeste, Holanda teoriza, cabe reverter em
força essa energia para a literatura — e sem literatura, o professor da UFPE
receia, o Brasil se aquieta: "Nem sonha mais sair desse presente".
Marcio Renato dos Santos é jornalista, mestre em Estudos Literários pela UFPR e autor, entre outros, dos livros de contos A Certeza das Coisas Impossíveis (2018) e A Cor do Presente (2019). Nasceu e vive em Curitiba.
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