O Ex-Poeta
Já não lembro o período em que trabalhei na Mais
Laiquis. Há três, cinco, dez, quinze, vinte anos? Mais? Menos? E importa precisar
ao certo quando? Se a experiência foi ótima ou não? Difícil fazer uma análise
hoje, mas tem um episódio inesquecível que pode revelar parte do funcionamento
da empresa – apesar de que nunca compreendi como ela era usada para fazer
dinheiro.
A Mais Laiquis exibia ao público, entre outras
atrações, uma reencarnação do Machado de Assis, a Simony da terceira idade,
clones do Lima Barreto, da Luma de Oliveira, do Paulo Leminski, da Nina Simone,
do Romário, da Xuxa, do William Bonner, da Cláudia Raia, da Simone, o Godard do
terceiro mundo e até um Duchamp sem urinol.
Uma de minhas funções era recepcionar os convidados.
Do aeroporto seguíamos até um hotel, onde a atração poderia descansar. Eu
também acompanhava a figura do hotel até a Mais Laiquis, permanecia no local
durante a performance, às 19 horas, e
em seguida ficava à disposição para levar novamente o artista ao hotel. Mas, em
geral, a estrela da noite encontrava companhia e, por causa disso, eu estava
dispensado. Pelo menos durante algumas horas.
No dia seguinte ao evento era necessário ir ainda
pela manhã ao hotel, entregar um voucher,
convênio da Mais Laiquis com uma empresa de táxi, e pronto. Aquele job estava finalizado, a menos que a
pessoa perdesse o voo, o que raramente acontecia.
A apresentação lamentavelmente inesquecível foi a
do Ex-Poeta. Não apenas o desempenho no palco, mas também a atuação do sujeito
antes e depois do evento. Sem dúvida, ele é um poeta, um excelente poeta, e
apesar disso abandonou a poesia.
Curioso é que, faz anos e a situação não se altera,
há centenas, milhares de pessoas que desejam ser e nunca serão poetas, apesar
da autoproclamação, de obras publicadas, da declamação de textos, entre outros
artifícios que podem enganar plateias distraídas, desinformadas e/ou
sonolentas.
Já o Ex-Poeta é artista, tem leitura, ócio e carisma,
conhece as regras da arte e as subverte quando necessário, artista que é. E ele
sabe quem é e tem noção de que o mundo também compreende quem é ele.
O Ex-Poeta decidiu raspar os cabelos, pinta as
unhas com esmalte preto, amarelo ou rosa e usa calças, tênis e camisas de cores
pouco discretas, resignificando aquela persona
que anteriormente usava ternos claros e era quase invisível em sua timidez.
Montado, no palco e também fora de cena,
apresenta-se não mais como poeta e sim como uma espécie de ator-palhaço que
conta piadas sem graça, esforçando-se para agredir verbalmente quase todos os
interlocutores, com exceção de quem é fundamental para o seu negócio.
Com um microfone, usa habilmente as palavras para
atacar inimigos imaginários e reais, personalidades e também o público. O
Ex-Poeta tem experiência e, falando sem parar, consegue fazer com que quase
todas as pessoas esqueçam que ele é (pelo menos levando em conta o senso comum)
feio, horrível de acordo com os detratores. Desenganado por cirurgiões
plásticos, coleciona apelidos que podem indicar algo a respeito de sua
aparência: Sloth, Badoxx, Freddy Kruger, Mamoso, Voldemort, Pingonheiro,
Presepes e Nosferatu.
A passagem do Ex-Poeta pela Mais Laiquis foi, na
avaliação do público e dos integrantes da equipe, incluindo o meu ponto de
vista, péssima. De maneira geral, quase todos lamentaram as atitudes de um
sujeito que poderia assumir não apenas a sua realidade física, mas também a
maldição pessoal e ser o que é (poeta), e não forjar um histérico animador de
auditório, ridículo, muitos disseram, absolutamente desnecessário, definiram outros
colegas – e triste, talentoso sim, mas – acima de tudo – chato enquanto farsa,
acrescento.
Conto inédito de minha autoria publicado na Revista Ideias, edição de agosto de 2019, com ilustração de Vitor Mann.
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