Madrugadas acesas


A Lola me convidou para jantar, lógico que aceitei, já estou em sua sacada gourmet, a primeira garrafa de vinho, um Malbec, tem menos de uma dose para um cálice e agora ela pede para eu acender a churrasqueira. Acreditei no convite só ao entrar aqui, estamos próximos, outro fato quase inacreditável para quem desejou a Lola por anos via Facebook.
Ela pediu para eu queimar alguns papeis, de uma pilha com centenas ou milhares de sulfite. Li algumas páginas, muitas, possivelmente mais do que deveria, e separei fragmentos, antes e depois de conhecer o quarto, a cama, os lençóis e o corpo, o maravilhoso corpo da Lola.
A segunda garrafa foi um Tannat, a Lola comentou que essa uva dá liga com carne vermelha. O que deu liga, muito certo mesmo, foi ela e eu, eu e ela, ela comigo, nós dois, madrugada acesa. Jantamos, ou melhor, a refeição aconteceu no início da manhã, maminha, mignon, alcatra e já nem sei mais o quê. E em algum dos intervalos passei os olhos naquela sequência de páginas separadas em meio ao descarte de papel: era um projeto de trabalho acadêmico.
Não esqueço o título: “De como os gaúchos foram ao Paraná aprender a andar de cavalo”. Depois conferi a mesma proposta, mas denominada “Os gaúchos aprenderam a cavalgar com os paranaenses”. Havia outros títulos para o projeto, não lembro como estavam enunciados, variações da mesma ideia, cada um deles destinado a uma instituição.
A proposta recebeu não em todas as universidades em que foi apresentada. Também li e reli as cartas de recusa e, apesar do excesso de vinho, ficou evidente que o projeto foi recusado por causa de possíveis erros “inviabilizadores”, expressão repetida nas análises. O autor, ou autora, da proposta destacava que uma comissão de gaúchos visitou oficialmente o Paraná para aprender a cavalgar antes de 1853, data da emancipação política do Estado. De acordo com alguns acadêmicos, não seria correto se referir aos moradores da região onde hoje é o Paraná como paranaenses antes de 1853 – a denominação deveria ser outra, mas esqueci a opção sugerida.
O tempo daquela madrugada, poucas horas, foi dividido entre a cama com a Lola, e a varanda gourmet, onde ela também estava e, apesar da deslumbrante presença da atriz mais bonita do que talentosa, eu tentava seguir na leitura. Avancei pelas páginas do projeto não realizado que mencionava, por exemplo, duas viagens, uma em 1730 e outra em 1810, de comitivas gaúchas até o território onde hoje é o Paraná. Os visitantes teriam tido aulas informais, mas aulas, com a finalidade de aprender a cavalgar e, especificamente em 1810, no local onde atualmente é a cidade de Guarapuava, também teriam recebido instruções sobre a arte, arte sim, de fazer churrasco.
Visitei outras duas, três vezes o apartamento da Lola, ela esteve seis, sete vezes na minha casa. Conheci o seu filho e a sua filha, ela foi apresentada a alguns dos meus parentes, mas somos dois competitivos, vaidosos e, tenho convicção, tolos.
Cada um seguiu por um caminho distinto, e não nos encontramos mais.
E na última madrugada que atravessamos, no apartamento da Lola, consegui reler aquele projeto recusado pelas universidades, em que o autor, ou a autora (não soube de quem era aquela proposta), defendia e estava a fim de provar que os habitantes do território onde hoje é o Paraná ensinaram os gaúchos a cavalgar, fazer churrasco e, também, sorver mate.



Conto inédito, de minha autoria, publicado na revista Ideias 213, de julho de 2019, com ilustração do Vitor Mann.

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