Luigi Ricciardi resenha A cor do presente
Talvez o
ponto em comum que una os contos de A cor do presente, de Marcio Renato dos Santos, seja o
estranhamento, aquele bom estranhamento de narrativas curtas e impactantes que
nos deixam um eco e nos fazem levantar a cabeça da página e, para usar um termo
contemporâneo, brisar. O livro de contos, publicado pela editora curitibana
Tulipas Negras, foi lançado em 2019 e possui onze contos distribuídos em cento
e dezoito páginas.
A estranheza
que nos faz refletir é sempre uma estranheza que elucida algum aspecto da
realidade, quase uma fantasmagoria, uma caverna de Platão às avessas. A atenção
precisa estar ligada, pois as coisas se dão nos detalhes em textos falsamente
superficiais, que são densos e que contém pitadas de humor, de trágico e até
mesmo de existencialidade.
Dou destaque
para o conto “Confortably numb”, mesmo título de uma canção do Pink Floyd que,
diga-se de passagem, adoro. Trata-se da história de Luciano, um web designer
que é músico amador que toca nas horas vagas. Logo no primeiro parágrafo do
conto, Luciano, que caminhava pelo centro da cidade, é atingido por uma
marquise que desaba.
Luciano e o
narrador parecem acreditar que o fato acontecido não foi um acidente: alguém
armou aquilo para Luciano ou então algo que ele fez, como um efeito borboleta,
acabou acarretando no desastre. A mente humana querendo procurar lógica em tudo
quando o acaso, para citar mais um trecho musical, não protegeu enquanto ele
andava distraído.
“Seria” é um
conto que flerta com o onírico/pesadelo. Conta a história de Diego que sai para
beber uma cerveja com Thais, filha do amigo Ernesto, e Frederico, namorado da
jovem. Em uma cena na qual as personagens e o próprio espaço estão com níveis
etílicos às tampas, há traição, crime e a fuga para uma casa misteriosa que dá
abrigo ao protagonista.
Também
onírico é o enredo de “No corpo do sonho”, conto no qual os corpos das mulheres
simplesmente desaparecem. Antônia, a detetive que é protagonista da história,
acompanha os fatos pela imprensa. Assustada com tantos desaparecimentos, que
agora começam a acontecer na sua frente, ela é jogada em um turbilhão que pode
tirá-la da realidade.
Como os bons
textos, o conto dá margem a várias interpretações. Uma delas, talvez a mais
evidente, é a de que se trata de uma alegoria sobre o desaparecimento das
mulheres em sociedades desiguais. Se Elza Soares canta que a “carne mais barata
do mercado é a carne negra”, Santos mostra que os desaparecimentos das
mulheres, como diz a apresentadora do telejornal, são apenas fake News (embora
Antônia veja, com seus próprios olhos, mulheres sendo arrebatadas para o nada).
Outro conto
impactante, talvez o principal do livro, é aquele que dá nome à obra. Em “A cor
do presente”, o personagem principal precisa se adequar às constantes mudanças
na moda e nos costumes. Algumas vezes parece que ele é apenas levado por certa
tendência. Em outros momentos, entretanto, a imposição vem de cima e o preço é
caro para aqueles que não conseguem ou não sabem se adaptar.
O conto é
sintomático do momento atual. Consegue misturar elementos diferentes no mesmo
contexto: a mão invisível do mercado que tudo escolhe e determina excluindo
todos aqueles que não se adequam a ela, junto a um conluio da própria população
com as autoridades para uma espécie de autocracia que dizima.
Embora não
sejam ruins, os contos seguintes não têm a mesma força dos anteriores. De
qualquer forma se mantém em pé. Talvez os únicos que não funcionem totalmente
sejam “Maldição” e “Eterna”, cujos diálogos não são verossímeis. Os outros
todos colaboram para a construção desse universo de estranheza de Marcio Renato
dos Santos constrói com competência.
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