Branca


Teve aquele siricutico de se afirmar resistente, e Branca postou: serei resistência! Tanta gente fez o mesmo, mas uns poucos, como o Joseph, a Irony e o Hate, vaiaram: resistência de chuveiro? Então, a máquina do mundo gira, a pomba também girou, e surge um convite. Salário nesse tempo de doze, treze, catorze, quinze milhões de desempregados. Evidente, evidentemente ela aceitou. Mesmo que no fim das contas, no final do túnel, o empregador seja algo que ela sempre disse desprezar, trem pagador conectado a tudo o que Branca dizia fazer-ser resistência.
E nesse solavanco de bem-aventurança, Branca deu um chega pra lá no Philip. Foi bom enquanto duro durou, esse é um de seus mantras. Ano novo? Novo emprego, endereço novo, outro ponto de vista, novas roupas, tudo novo ou quase. Lavou tá novo, né não?
Branca daqui pra frente também é Uaiti ou Blanca para o próximo, para o seguinte, para quem vier. O ex já é estória, estória pra ser esquecida, especialmente pelo fato de que ele já precisava de bengala, apoio moral e remédios demais, até do azul carecia, pode? Branca, Uaiti ou Blanca diz que não nasceu pra ser enfermeira e, enfim, está se permitindo novo futuro onde cabe outra pessoa, se possível mais jovem, pra carregar a malinha de mão do seu coração.
Para se reinventar Branca fez um curso sobre vinhos e já usa o repertório no bar, no japonês, em casa e na cama. Cabernet Sauvignon harmoniza carne vermelha: as coxas do Giulio são rubras, ai, ai. Peixes com Merlot, Pinot Noir e grelhados, Tempranilo pra carne de coelho e as madrugadas com o Nandinho são ainda mais excitantes se tiver Malbec. Queijos fortes pedem um Gewürztraminer, o Riesling acompanha aves gordas, sopas vegetarianas pedem um Sauvignon Blanc e, se pintar um asiático, vai provar Pinot Gris. O Philip, ela faz questão de dizer, é página virada: “daquele tempo em que, cruzes, eu ainda bebia cerveja”. A fila já andou, Branca costuma dizer pras amigas da academia. “E quando que não anda?”, completa uma colega de balada, a Bibi.
Mas, que ninguém saiba do fato, e quem souber guarde bem o segredo, o prazer maior de Branca atualmente é viabilizado pela amiga Humberta ou Humbertinha, a filha do dono de uma funerária. O corpo que chega na empresa é chamado de podrão. Pelo menos é assim que Humbertinha e Branca se referem aos cadáveres. Antes da preparação, da maquiagem e da família ter acesso, Branca consegue um tempo, trinta minutos, para ficar sozinha e se bolinar diante de um podrão. Eis a tara de Branca, Uaiti ou Blanca nesta vida: gozar com os mortos.
Ela tem outras taras, muitas, e uma das obsessões é comentada pelos amantes, colegas de trabalho e principalmente pelas inimigues. Branca deixa o cofrinho visível. O pessoal da firma faz zoeira, ela sabe e diz que é uma ação que a deixa excitada. E, antes de transar, pede ao parceiro para passar moedas sobre as suas nádegas e, em algumas situações, ainda com roupa, solicita que objetos deslizem pelo espaço da calça em direção ao cóccix. É uma delícia, confessa a mulher que gosta de dizer que, se não for pra causar, “nem me chame”.



Meu conto inédito publicado na Ideias de junho de 2019, com ilustração do Vitor Mann.

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