O discurso do Guido Viaro
Discurso de saudação que o Guido
Viaro [foto de Bebel Ritzmann] escreveu e performou na minha posse na Academia Paranaense de Letras, em
evento realizado na noite de 16 de julho de 2018 no Paço da Liberdade, na Praça
Generoso Marques, em Curitiba.
Curitiba, 4 de abril de 2074.
Meus confrades e minhas confreiras, hoje a dor atravessou o peito de todos
aqueles que cultuam o gosto pela sutileza e pela inteligência, de todos os que
conseguem rir da condição humana e encontrar beleza em nossa condenação atávica.
É com imensa tristeza que anuncio
o falecimento do grande escritor brasileiro Marcio Renato dos Santos às vésperas
de seu centésimo aniversário. Autor de 45 livros de contos, dois romances, um
dicionário e uma autobiografia, Marcio atravessou fronteiras sendo traduzido em
31 idiomas e tendo recebido os mais importantes prêmios literários.
Mas nem o reconhecimento do
público e da crítica, nem as centenas de estudos acadêmicos, ou sua imensa
fortuna crítica, têm muita importância diante do simples poder transformador de
sua literatura. Marcio escancara a condição humana, faz rir quando o único
caminho é esse mesmo, pois não existem respostas ou escapatórias, torna imenso
o mesquinho e amesquinha os grandes homens.
Os detratores espalham adjetivos
“pessimista exagerado”, “Cético impiedoso”. Esses críticos não estão totalmente
desprovidos de razão, mas talvez tenham conseguido ler apenas uma ou duas
camadas de sua obra. Mas existe pelo menos mais uma, muito sutil, difícil de
ser percebida. Há um esmalte sintético incolor que injeta no pessimismo um
brilho amoroso, a doce sensação de que, apesar de tudo, ainda é mágico o “
estar-se vivo”. E é esse ingrediente secreto que transforma seus contos em
pedaços de eternidade.
Portanto, meus confrades e
confreiras, a morte de um grande escritor é apenas uma oportunidade que ele
recebe para desvencilhar-se das amarras do tempo e observar com curiosidade,
mas sem emoção, a velocidade com que os séculos vão arrancando as páginas de
sua obra.
Talvez nem tudo sobreviva e
livros inteiros possam ser suprimidos pelo tempo. Mas o núcleo ardente de sua
obra pulsará pelos séculos vindouros, pois é lava incandescente, é grito, e o
homem nunca deixará de gritar. Quando no distante ano de 2018 entrou para nossa
Academia, fato testemunhado por uma única acadêmica viva, nossa decana, Luci
Collin, Marcio, que naquela ocasião tornou-se o mais jovem membro de nossa
instituição, já possuía uma sólida obra composta por sete livros de contos e um
“dicionário amoroso”, onde transforma em verbetes seus vículos afetivos com
lugares e pessoas de nossa cidade.
Muitos críticos consideram os
sete primeiros livros de contos como a primeira fase de sua literatura, não sei
se concordo com isso, descubro neles qualidades crescentes que culminam no
sétimo livro “A certeza das coisas impossíveis”, meu favorito desse período e
que a meu ver é o iniciador de sua maturidade literária. Nessa obra Marcio
começou a ser exato, não desperdiçou palavras, foi direto ao que interessa.
Nada sobra ou falta.
Foi a partir daí, quando os
fundamentos estavam bem sólidos é que começou a experimentar, espalhar focos
narrativos, distribuir consciências, fazendo isso sem nunca haver se tornado um
escritor hermético. Respeitando sempre todos os tipos de leitores, permitindo
que a primeira camada da história estivesse disponível para aqueles que querem
apenas isso: uma história.
Mas quem é o homem de quem hoje
nos despedimos? Marcio Renato dos Santos, filho do Luiz Carlos e da Julia,
curitibano, formado em jornalismo pela PUCPR, casado com a Fabíola e pai do
Vítor. Marcio nem sempre viveu de livros, atuou como jornalista, repórter e
resenhista literário, conheceu e entrevistou a maior parte dos grandes nomes
das letras brasileiras da primeira metade do século 21.
Polêmico, nunca se furtou a
provocações, principalmente quando percebia que a mídia e o público em geral
davam importância excessiva a fatos pequenos, que não passavam de modismos. Em
seus dias de juventude seus inimigos superavam largamente o número de amigos.
Em sua obra, utilizava-se das
ferramentas da modernidade sem transformá-las em objetos de adoração, elas
permaneciam ferramentas, instrumentos que ajudariam a atualizar a figura de um
homem e uma mulher cuja essência é atemporal. Exemplo disso é seu belo livro
“Mais Laiquis”, onde personagens naufragam nos desejos de pertencer a um
admirável mundo novo que não se sustenta por si só e acaba formando náufragos
emocionais que flutuam em oceanos de tecnologia e informações inúteis.
O sucesso que as décadas foram
trazendo-lhe em pequenos pedaços, não o transformou, manteve sua rotina
inalterada, o contato com novos e velhos amigos, o mesmo sorriso, as mesmas
brincadeiras e fofocas.
Uma vez me confessou que por anos
havia buscado o reconhecimento e quando ele finalmente chegara, não sabia o que
fazer com ele — a afirmação foi seguida por um sorriso que logo se transformou
em gargalhada. Apesar de nunca ter sido um homem religioso, Marcio fez o que a
maioria dos homens inteligentes fazem: criou sua própria religião, seus
profetas são os escritores que admira: Machado, Tchecov, Carver, Dalton,
Maupassant. Seu messias: o grande conto, aquele que nunca ninguém escreveu e
com o qual todos sonham. A maneira de professar sua crença: lendo e escrevendo,
ajoelhando-se diariamente na prática do evangelho das letras.
E foi o que fez ininterruptamente
durante oitenta anos.
O primeiro livro publicado por Marcio chama-se “Minda-au”, que foram as primeiras palavras pronunciadas pelo autor, o livro possui 7 contos e marca o início da carreira do autor aos 34 anos, mas a essa altura Marcio já possuía 700 contos escritos. Portanto, para cada 100 contos escritos apenas um o autor julgou digno de publicação. Em sua autobiografia, ele revela o destino trágico dos outros 693 contos não publicados. O disquete, um antigo suporte digital do final do século 20 e início do 21, foi destruído pelo autor e os contos perdidos para sempre.
O primeiro livro publicado por Marcio chama-se “Minda-au”, que foram as primeiras palavras pronunciadas pelo autor, o livro possui 7 contos e marca o início da carreira do autor aos 34 anos, mas a essa altura Marcio já possuía 700 contos escritos. Portanto, para cada 100 contos escritos apenas um o autor julgou digno de publicação. Em sua autobiografia, ele revela o destino trágico dos outros 693 contos não publicados. O disquete, um antigo suporte digital do final do século 20 e início do 21, foi destruído pelo autor e os contos perdidos para sempre.
E fico pensando, não será essa
uma atitude de grande maturidade, saber cortar nas carnes, abandonar os sonhos,
permitir que as energias voltem a fluir. Foi o que fez Arthur Rimbaud, quando
aos 21 anos de idade calou-se para sempre, desistindo de ser o maior poeta
francês para transformar-se em traficante de armas na África.
Ao contrário dele, Marcio não
abandonou a literatura, apenas destruiu aquilo que não julgava ser o melhor que
conseguiria produzir. E continuou fazendo isso ao longo de toda sua carreira. E
mesmo o material que conseguia passar por seu crivo, constantemente caía na
conta do arrependimento. Em contos considerados pela crítica primores de
composição, o autor descobria assimetrias, detectava cheiros azedos e
princípios de apodrecimento.
Foi também em sua autobiografia
que descobrimos uma outra história pitoresca. Marcio criou um selo literário, o
“Tulipas Negras”, por ele editou de seu terceiro ao sétimo livro de contos.
Antes de editar a si mesmo, o que para muitos é uma vergonha, mas para ele foi
um grande orgulho, o autor, na época um assalariado com filho pequeno, decidiu
bancar a edição de livros-conto de jovens autores e outros já consagrados. Os
livrinhos eram distribuidos em lançamentos e eventos literários. Marcio
fazia-se passar apenas pelo intermediário, segundo ele a verdadeira benemérita
era uma portuguesa chamada Olga Verobe, que por um complicado acaso do destino,
mesmo estando do outro lado do oceano, apaixonara-se por literatura paranaense
e resolvera investir em sua difusão. Os autores editados recebiam uma mensagem
de agradecimento de Olga escrita em uma tentativa de português lusitano que
deixava algumas brechas para desconfiança. Mas por trás da falsa Olga Verobe,
aliás, nome verdadeiro de sua avó paterna, havia a generosidade de um jovem
escritor, que antes mesmo de construir a própria obra preocupava-se em divulgar
os novos e celebrar os antigos. Hoje em dia esses livros-conto atingem somas
elevadíssimas nas casas de leilão especializadas.
O menino nascido em Curitiba em
1974, cresceu, plantou árvore, teve filho e escreveu muitos livros, amou,
errou, mas construiu, sonhou e fez questão de contar seus sonhos aos outros.
Soube ouvir e falhar, foi humano, em todos os sentidos que a palavra comporta.
E como humano, morreu, fechou os olhos e foi aprender maneiras diferentes de
sonhar. Morreu no mesmo dia do nascimento de sua bisneta Louise. Talvez achasse
que é importante deixar espaço vago para os que chegam.
Mas talvez, meus confrades e
confreiras, e essa é uma possibilidade corroborada pelas mais importantes
teorias físicas contemporâneas, talvez Marcio ainda esteja vivo, talvez seja um
adolescente rabiscando em um caderno espiralado os primeiros contos, ou um
homem maduro recebendo prêmios literários e no fundo de seu coração se
perguntando se aquele reconhecimento no final das contas tem alguma importância
real, ou então ele ainda seja o jovem acadêmico que em 2018 assumiu a cadeira
número 36 de nossa instituição. O mais provável é que seja todos eles,
existindo ao mesmo tempo, acontecendo e pulsando, nascendo e morrendo, cada um
deles navegando pela certeza de que existe, nesse oceano cujo vento que sopra
as velas chama-se desejo.
Marcio, o melhor ainda está por
vir. Seja benvindo à Academia Paranaense de Letras.
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