A cor do presente

            O vento chega pelo noroeste, as mãos que distribuem as cartas são outras e Simão nem sabe mais se gosta do azul. Não, azul é sua cor favorita, até os desafetos sabem que o azul define Simão e etc e tal, mas ele prefere não se expor com anil. O não-herói pretende atravessar todas as estações possíveis e, para isso, convém evitar afrontas, insultos, qualquer desfeita.
            Agora é temporada rosa, do rosado, de múltiplos rosáceos. Simão já encomendou um closet repleto de calças, sapatos, meias, cuecas, blazers, camisetas, bonés e até pijamas da cor do presente. Se alguém perguntar, responde que rosa é o novo branco, a mais bela e universal das cores. Vai enunciar a frase até se não houver questionamento, afinal, é tempo de afirmar onde está, o que pensa e quem é. Simão é rosa desde a infância, ora direis, ouvir rosados.
            Não faz muito tempo, talvez há dez anos, era obrigatório gostar de coelho e Simão, que prefere coelhas, desfilava abraçado beijando coelhos. Depois, faz cinco, seis anos, ficou liberado transar coelhos ou coelhas, era recomendado variar e ele, para não provocar ruído, alternava coelhos e coelhas em pistas de dança, eventos e lençóis. No momento, Simão ainda não sabe qual é a recomendação e prefere circular sozinho, como é de bom tom, todo rosado.
            Outra dúvida dele é a respeito de como circular. No tempo das bicicletas, autoproclamou-se cicloativista e foi fotografado na inauguração da praça Os Chatos Sobre Duas Rodas e até em pedaladas noturnas nudistas. Abandonou a bike quando chegou a temporada pedestre, que durou dois anos. Então, usar Uber se tornou tendência e ele se rendeu ao aplicativo de transporte. Ano passado aconteceu o revival do táxi e Simão também aderiu ao modismo. Há pouco, viu coelhos e coelhas rastejando e seguindo de quatro, com pés e mãos no chão, e ficou com medo de que essas práticas se tornem opções, se não obrigatórias, recomendadas para a movimentação na cidade.
            Mas agora Simão segue preocupado com um compromisso inadiável, para onde está indo. É o Jantar do Ano. Não seria elegante recusar o convite, apesar dos riscos que o evento apresenta. Vai ter de comer e beber não apenas diante de quem decide a direção do vento, mas, o que é pior, na presença dos lacaios. Estes são asquerosos, inevitáveis e estarão atentos aos movimentos dos convidados. Simão lê e relê manuais, mas não tem certeza a respeito do que convém comer e beber. Carne bovina pode? Misturada com qual carboidrato? E as saladas? Há legumes vetados? E os queijos? A posição da comida no prato certamente será analisada — há centenas de lacaios, muitos dos quais contratados apenas para fazer essas e outras análises.
            Simão tem sede e gostaria de beber cerveja ou vinho, mas, se um manual que consultou está correto, agora o uísque harmoniza refeições e é indicado em encontros públicos e mesmo para o consumo solitário dentro de casa. Espumante, vodka, cachaça, conhaque, batidas, licores e até refrigerantes também são recomendados. Ainda não baniram cerveja e vinho, inclusive é possível pedir, garçons servem, mas, enfim, ser flagrado ingerindo vinho ou cerveja por um lacaio é o que pode comprometer, não apenas o futuro, mas o presente.
            Fugir da cidade é uma opção, mas Simão sabe que os lacaios localizam em poucas horas o fugitivo. Há dezenas, talvez centenas de casos, inclusive de amigos, como o Stuart, o Maneko e o Edmundo, que tentaram, foram capturados e, em seguida, excluídos do jogo. Não importa para onde o coelho vá, tem monitoramento até nas férias e, por isso, Simão deve seguir para o Jantar do Ano.
            Simão passa por uma rua que dá acesso ao Jardim das Delícias, o único espaço da cidade em que ele estaria livre do olhar dos lacaios. É uma área de cento e cinquenta e seis metros quadrados cercada por árvores e mata fechada que impedem ver, de fora, o que acontece no local. Mas é possível escutar, principalmente sons de coelhos e coelhas, e sentir aromas que emanam de lá — agora, Simão sabe, acontece um ritual com o uso de Cannabis sativa.
            Os lacaios não são proibidos de entrar no Jardim das Delícias, mas eles evitam porque, lá, não há espaço para a razão. O sono da razão não produz monstros no Jardim das Delícias. Lá, os sentidos são a crítica da razão. O espaço, inclusive, é frequentado por atuais e antigos coelhos e coelhas que controlam a direção dos ventos. Os frequentadores desfrutam de tanto prazer que esquecem ou preferem esquecer o que vivenciaram em dupla, trio, quarteto, coletivamente ou mesmo apenas como observadores solitários naquele trecho cercado de árvores no centro da cidade.
            Simão escuta um som e se dá conta de que coelhos e coelhas correm na direção contrária para onde ele segue. Pergunta a um deles o que está acontecendo e recebe a informação de que o sentido do vento agora é outro e é necessário usar roupa preta. Uma coelha confirma a notícia e um terceiro transeunte diz para Simão se livrar da roupa rosada.
            Ele arranca adesivos cor de rosa de seu par de sapatos, que volta a ser apenas preto. Também tira a calça, o blazer e camisa e joga as peças na lixeira. Está com roupa dupla e, por baixo, como qualquer coelho, coelha ou lacaio pode ver, o tecido de seu segundo traje é da cor negra.
            Ao invés de fugir, caminha para onde estava indo e, em minutos, encontra um caminhão seguido por centenas de coelhas e coelhos vestidos com roupas pretas.
            O caminhão passa e Simão integra-se à multidão.
            A marcha percorre avenidas da região central durante três horas ou mais e, durante o trajeto, coelhos e coelhas que usam roupas escuras comentam que o Jantar do Ano foi cancelado e os convidados vestidos de rosa presentes no evento já devem estar presos.
            Simão sorri ao lembrar que estava desconfiado de que a direção do vento poderia mudar e, por isso, antes de sair de casa, se preveniu.
            O caminhão para e, pelo sistema de som, uma voz feminina informa que a bebida e a comida do Jantar do Ano foram confiscados e estão no Jardim das Delícias, onde, daqui a alguns minutos, acontece a cerimônia de posse dos novos donos da situação. Quem participa da marcha está convidado e pode levar um acompanhante, até mesmo um preso ou uma presa recentemente por usar roupa rosa, que, neste caso, também deve satisfazer os desejos de outros coelhos e coelhas vestidos com a cor autorizada — pelo menos por enquanto.


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Conto inédito, de minha autoria, publicado na revista Ideias (Travessa dos Editores), julho de 2018, número 201.

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