Finalmente hoje no Jornal Opção

O Jornal Opção, de Goiânia, publica na edição de 19 de junho (domingo) resenha de Finalmente hoje
O texto é de Antonio Cescatto.

Um engenheiro descobre que seu chefe vai abandonar a empresa e sonha em ocupar o lugar que era dele. Outro homem, sentado em um café, vê passar uma mulher e tem a impressão de que ela é a mãe de seu melhor amigo, que desapareceu durante a passagem do tempo. Um terceiro desce de seu apartamento para comprar cerveja no dia em que o Brasil enfrenta o México, na Copa, e vê os porteiros do seu prédio brigando. Outro homem pensa em enviar uma carta antes de entrar no trabalho. Alguém espera um ônibus que pode chegar a qualquer momento.
O que pode haver de inesperado, curioso ou surpreendente em situações como essas? Aparen­temente, nada. Mas essa aparente normalidade de uma situação (e da vida) cotidiana logo é perturbada de forma irreversível. De repente, sem que percebamos claramente de onde veio o choque, o transtorno, a interferência, eis que o inesperado, o curioso e o surpreendente instauram sua presença no meio do texto. Ele está entre nós. E esse entre nós não é apenas o entre nós deles, os personagens, mas o entre nós que permeia nossas vidas.
O tempo
“Finalmente hoje”, de Marcio Renato dos Santos, é um livro que tem esse dom: instaurar o estranhamento onde ele parece absolutamente ausente. Cada um de seus personagens é um Robinson Crusoé urbano, perdido nas ilhas de isolamento em que se transformou a vida nas grandes cidades, a perseguir de forma desconexa a pista de sextas-feiras imaginárias, sejam elas uma carreira, uma mulher, um homem, ou algum destes inumeráveis algos que não conseguimos explicar.
Em 14 contos sintéticos e lacônicos, Marcio leva o leitor a reencontrar personagens que são familiares não pelo que fazem ou vivem, mas pelo que representam e significam em nosso imaginário. Ao mesmo tempo em que são concretos, também são fantasmas. Nossos queridos fantasmas. A­queles que amamos odiar ou que odiamos amando, aqueles com os quais só a literatura, a boa literatura, com sua capacidade de falar de coisas a respeito das quais não se fala e de sentimentos indizíveis, é capaz de revelar em toda sua complexa realidade.
De certa forma, mesmo sendo pontuado por personagens dos mais diferentes, “Finalmente hoje” parece ter um personagem principal: o tempo, este criador de perspectivas distorcidas e realidades difíceis de definir. Prova disso é como são nomeadas as seis seções em que os contos são divididos: Quase Agora, Já Passou ou É Daqui a Pouco?, Nunca Mais, Muito Antes de Antes de Ontem, Num Outro Agora e 2016, seção que tem apenas um conto que acaba, finalmente, hoje. O que parece ter passado continua presente, o que parece presente continua passado, mesmo amanhã já foi e assim por diante, num jogo circular e hipnótico para o qual somos arrastados de forma sutil e habilidosa.
Para nos levar por estes estranhos caminhos do tempo e de suas metamorfoses na vida humana, Marcio utiliza de um recurso básico: o humor. Mas o humor que forma a medula do livro não é aquele que leva à facilidade do riso ou ao conforto da cumplicidade. Aqui estamos diante de um humor que tem a função de desconcertar e criar o estranhamento, transformando até situações grotescas, como a de um casal em um curioso coito, ou um sujeito dado a flatulências, em intrigantes charadas existenciais, a serem resolvidas — ou não — pelo leitor, através de outro recurso muito caro ao humor: a inteligência.

Daltoniano
Mesmo morando em Curitiba e concentrado feito um samurai na escrita de contos breves, Marcio Renato dos Santos é, ao contrário do que possa parecer, um parente distante de Dalton Trevisan. Sua escrita e seu trabalho percorrem outros caminhos. De “Minda-au” (2010), passando por “Golego­legolegolegah!” (2013), “2,99” (2014), “Mais laiquis” (2015) até este recém-publicado, “Final­mente hoje”, o apuro na concepção formal e o compromisso com a invenção (elementos daltonianos por excelência) desenvolvem-se em outra direção.
Tais elementos trazem, para o primeiro plano, a realidade de uma cidade que se fragmenta em mil pedaços e em mil diferentes tipos de seres humanos; estes envolvidos em situações que só podem ser compreendidas por dispositivos novos, tais como: a veia satírica, o humor afiado, através dos quais se revela a dimensão da fragilidade de que somos todos (criador, criatura e leitores) constituídos.
Ao introduzir o tempo nesta equação (como faz agora, em “Finalmente hoje”), Marcio nos convida para um baile onde todos os convidados usam máscaras, as quais vão caindo uma a uma à medida em que o baile se desenvolve, deixando ver, atrás dessas, outras e mais outras e mais outras e mais outras. Eu, se fos­se você, aceitava o convite para essa dança. l
Antonio Cescatto é autor do romance “O mundo não é redondo” (2010) e das novelas “Preponderância do pequeno” (2011) e “Cloaca” (2012). Ele nasceu e vive em Curitiba (PR)

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