Paulo Venturelli consagra Golegolegolegolegah!

GOLEGOLEGOLEGOLEGAH!
Marcio Renato dos Santos
Travessa dos Editores – 73 p.
No "Decálogo do perfeito contista", Horácio Quiroga determina no oitavo "mandamento" e no nono:
8. Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distrai vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abusa do leitor. Um conto é uma novela depu- rada de excessos. Considera isto uma verdade absoluta, ainda que não o seja.
9. Não escreve sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho.
Pois é isto que Marcio Renato dos Santos faz em seu recente Golegolegolegolegah! Ele toma as rédeas dos personagens e leva-os firmemente até onde quer, com perfeito domínio da arte de criar alguém vivo e conduzi-lo com expertise, dando-lhe vida pulsante e convincente.
Ao mesmo tempo, o autor não se deixa levar pela emoção. Os contos são calculados para aquele efeito único que é o objetivo do conto, segundo Poe. Depurados pela lapidação verbal, as narrativas têm alta voltagem ao nos apresentar personagens praticamente reduzidos a zero. Estes personagens parecem cimentados numa condição imutável, para a qual não veem saída. É como se seu destino fora traçado por deuses desconhecidos que lhes teriam lançado a maldição: fiquem onde estão e não se atrevam a dar um passo à frente. Isolados, perdidos de si mesmos, enfrentam o inferno de uma solidão áspera em que tudo conspira contra eles. Felicidade? Não a atingem nem de longe. Desespero? São tão anu- lados por seu cotidiano sombrio e massacrante que sequer se dão ao luxo de arrancar os cabelos.
Protótipos de um mundo esvaziado de sentido, um mundo que não tem mais lugar para o humano, um mundo talhado na mornidão do não-sentido, eles chafurdam na vala comum dos escrotos que se perderam de si próprios e, principalmente, do outro. O outro pode, às vezes, ser um fantasma, mas não tem referencialidade substantiva para lhes dar o suporte de uma interação viva, complexa, na indefinição de toda convivência.
É claro que hoje em dia vivemos todos à merce e ao redor de nosso umbigo. Os personagens de Marcio Renato dos Santos levam isto ao extremo. Não saem de casa, não conhecem a cidade onde moram, muito menos as suas ruas, seus bares, seus restaurantes. E quando saem, não passam de autômatos numa prática existencial engessada num nada corrosivo que os leva sempre a becos sem saída.
Triviais e anônimos, desqualificados e de baixa extração (mesmo quando têm dinheiro, cuja origem é sempre indeterminada), eles levam uma vida ao rés do chão, porque lhes falta um projeto existencial, lhes sobra uma nulidade acachapante em que estão sozinhos perante o próprio ato de existir. Se se olham no espelho, não se reconhe- cem porque seus traços foram diluídos e devorados pela trivialidade de seu rastejamento na vala dos comuns mortais, em que tons de personalidade deixaram de existir.
Plenos das mazelas mais triviais, eles sequer têm um nome próprio, com exceção de Zé Ruela. Este, mais que nome, tem uma série de apelidos que o desqualificam e o jogam à margem de uma existência tranquila no bairro em que mora. Afinal, é o louquinho do lugar, mais soterrado que respirando o ar de todos.
Vamos dar uma olhada, ainda que rápida, em cada conto que compõe o livro:
"Golegolegolegolegah!" - um título que é uma longa onomatopeia para a rarefação do personagem-narrador. Este fulano abandonou sua cidade natal que era dominada por uma família de tiranos que controlava a todos. Mudou-se para Goi- ânia. Mas pode ser também Maringá, Florianópolis, Caxias do sul ou Campinas. Ele não vê diferença de um lugar para o outro. Enquanto narra, tem consciência da sua função e interrompe o ato de escrever várias vezes para cuidar de tri- vialidades, como beber um copo d´água. E não tem muita certeza do ponto em que deve terminar a narrativa. E o texto que ele escreve, o vem fazendo há anos: escreve, apaga, reescreve.
"Você tem à disposição todas as cores, mas pode escolher o azul." - um título lírico, afável para uma história em que o narrador-personagem não tem controle sobre nada. É um obsessivo: precisa passar por um mesmo ponto da cidade, sem definição geográfica. Até que certa vez o ônibus em que trafega tem uma pane e ele é obrigado a descer. Completamen- te desorientado, não sabe em que local está. Misturando fome e ansiedade, anda e desanda, sem saber onde ir. Até que reconhece uma rua e, a partir daí, vai em busca daquele ponto que automaticamente o chama: a passarela, a ruela, a viela, o canal, o posto que é seu trampolim para o azul. Você pode escolher o azul? Não, o azul é impingido como ú- nica condição possível, levando o leitor ao mesmo beco-sem-saída deste narrador que perdeu todas as cartas de seu jogo.
"Digital reverb delay" - um sujeito aparentemente normal. Mas não fala. Conformado. Passou sete anos numa prisão e não teve garras para se defender contra o que é acusado. Kafkiano, recebeu "dinheiros inesperados" e se instalou diante do mar. Todavia, tem saudades dos dias ruins. A garganta está inflamada por falta de uso. Grava suas falas para ouvi- las e refletir sobre "a sorte de não ter despencado no precipício." Ele não despencou no precipício? Claro que sim. A partir do momento que "perde" a linguagem, ele se desumaniza, não tem mais uma interação possível com seus semelhan- tes e esta anulação de sua humanidade - já que a linguagem faz o homem - é o voraz precipício de sua nulidade. Ele é aquele que tenta se erguer puxando os próprios cabelos ou tentando pular a própria sombra. E assim, está emparedado numa condição sem pontes para o outro e, autocentrado, macera-se na gravação do que diz, e sua reflexão é mais um ato de quem não é nem diante de si mesmo.
"Nevoeiro" - outro fulano que ganha um bom dinheiro, sem que isto seja condição de viver em plenitude. Costuma encon- trar amigos mortos há mais de vinte anos. E nunca tem certeza: é o amigo que revê ou é alguém parecido? A morte aqui tem sua presença marcante como um contraponto ao raso existir de alguém que só sobrevive num dia a dia repleto de na- das. O dinheiro virou mera moeda de troca que não disfarça seu processo de alienação em que está embutido. Sem um ob- jetivo para ser e fazer, o escamoso cotidiano o sufoca e lhe cria a ilusão de ver rostos conhecidos que podem não ser. Então o que de verdade acontece é que ele está no interior de um labirinto de espelhos a refletir suas imagens indefinidas, imagens de um homem que não tem rosto próprio e cai no auto-engano de pescar possíveis referências nesta ilusão de ver quem pensa que vê.
"Zé Ruela" - este é o louquinho das pernas fortes e dos braços finos. Costuma correr pela cidade e em lugar de isto ser algo positivo, é fator de desmerecimento diante da comunidade. Queria ter a profissão de mensageiro. O que con- segue é ser rotulado de Gasta Sola, Carpe o Pé, Serelepe, o Louquinho da Rua, o Sem pausa. Louco manso, segundo sua própria concepção, tentou trabalhar para distribuir panfletos de propaganda. Desanimado, jogou tudo no lixo e perdeu o emprego. Sua dúvida: até quando a cidade vai permiti-lo andar por aí? É o homo faber, molde do homo ludens que le- vou ao homo loquax desistindo de seus atributos, não desenvolvendo nenhum potencial, por isto não livre e um homem sem liberdade é o retrato de nossa sociedade em que nossos papéis são programados por ideologias dominantes que nos reservam pouco espaço de manobra na busca do ser.
"Cento e noventa" - roupas e sapatos importados. O personagem come em bons restaurantes. Porém, descobriu que o suces- so engorda. Morde-se porque um conhecido tem prestígio como músico e ele não compartilha da opinião dos que veem qualidade neste artista. Enfurece-se porque Fulano é tido como bom escritor e, ele, claro, não concorda com tal ró- tudo. Pensa em usar parte de seu dinheiro para demolir estes mitos. No fundo, um interesseiro cínico que enganou e conseguiu subir na vida. No seu nada, percebe "que talvez nenhuma palavra tenha importância como teve um dos primei- ros sons que emiti e ouvi:" golegolegolegolegah!
É preciso ressaltar o imenso salto de qualidade e maturação que o autor deu de seu primeiro livro Minda-au para este  Gole. Ganhou em técnica, em densidade, em substância. Ganhou na precisão concisa de histórias que deitam e rolam na   ironia. Ainda que as situações se passem sem um localização precisa e definida, não é fora de propósito localizar es- tas histórias em Curitiba, com seus provincianismos, suas panelinhas, sua autofagia melindrada diante de quem cons-   trói alguma coisa que o alça fora do comum.
Talvez, nos diversos contos, tenhamos sempre o mesmo personagem. O importante é que o autor o(s) pegou pelas mãos e    o(s) levou com firmeza até onde queria, como prega Quiroga. E nos retratos secos, não há emoção. Há a racionalidade   de quem escreve com equilíbrio, traçando um caminho de arquitetura textual muito bem pensado.
E não poderíamos deixar de dizer algumas palavras sobre o livro enquanto produto editorial. Uma edição surpreendente-  mente bela, dessas que fazem bem aos olhos e às mãos, rivalizando com as melhores editoras do país. Um projeto de de- signer  gráfico de primeira linha de Marciel Conrado, também responsável pelas sugestivas e intrigantes ilustrações.
É bom e salutar reconhecer (sem o provincianismo citado antes) que Curitiba não é mais só uma promessa, porque já tem  um lastro de produção invejável em todas as artes, em especial na literatura. É só dar uma espiada na publicação de   tantos jovens autores que apareceram nestes últimos anos.

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