Dia da marmita

 

– Escuta, vem cá.

 

– Hein?

 

– Só hoje.

 

– O quê?

 

– Não vai se repetir.

 

– Como?

 

– Vamos lá?

 

– Onde?

 

– Estou com fome.

 

– Eu também.

 

– Dizem que tem carne, massa e nenhum vegetal.

 

– Sério?

 

– O chope é geladíssimo.

 

– Cu de foca?

 

– Sim.

 

– Agora eu vi vantagem.

 

– Na foca ou no...

 

– Que é isso, tá pensando que eu...

 

– Bóra, então?

 

– Demorô.

 

– Afinal, parado não emagrace.

 

– Nem me fale em emagrecer.

 

– Seria incapaz de tocar nesse assunto.

 

– Por quê?

 

– Tenho outra urgência.

 

– Qual?

 

– Preciso comer.

 

– Eu também.

 

– Mas tem um problema.

 

– Que problema?

 

– Estou sem grana.

 

– Sério?

 

– Seríssimo.

 

– Então por que você...

 

– Me confundi.

 

– Você está bem?

 

– Com fome, mas me sinto bem. E você?

 

– Do mesmo jeito.

 

– E daí?

 

– Como assim?

 

– Vai fazer o quê?

 

– Eu?

 

– Pretende almoçar?

 

– Eu trouxe marmita.

 

– Você não iria no restaurante?

 

– Pra te acompanhar.

 

– E a marmita?

 

– Deixaria pra amanhã.

 

– Não estraga?

 

– Não.

 

– O que tem na marmita?

 

– Carne, arroz, feijão, tomate e alface, eu acho.

 

– Acha?

 

– Não tenho certeza, preciso abrir.

 

– Você prepara a marmita?

 

– Não, compro vinte, vinte cinco marmitas no fim do mês.

 

– Onde você compra?

 

– Numa loja.

 

– Loja?

 

– De uns vizinhos, perto de casa.

 

– E é bom?

 

– O quê?

 

– O rango, a marmita. É boa?

 

– Excelente.

 

– Caro?

 

– A marmita?

 

– Sim.

 

– Mais em conta que comer em restaurante.

 

–Isso eu sei, mas quanto custa?

 

– O quê?

 

– Cada marmita?

 

– Não sei.

 

– Não sabe?

 

– Compro umas vinte...

 

– E quanto você paga pelas marmitas?

 

– Não sei.

 

– Não?

 

– Não confiro o preço.

 

– Elas ficam no freezer?

 

– Sim.

 

– Não tem medo que estraguem?

 

– No restaurante o risco é maior.

 

– E congelar não tira o gosto?

 

– Do quê?

 

– Da comida?

 

– Acho que não.

 

– Acha?

 

– Sim, não tenho certeza. Mas feijão tem gosto de feijão.

 

– Nem sempre.

 

– Como assim?

 

– Feijão estragado é azedo.

 

– Arroz também.

 

– E carne?

 

– Pepino azedo é bom.

 

– Nem fale em pepino.

 

– Por quê?

 

– Me lembra vegetal.

 

– De fato, é um vegetal.

 

– Odeio vegetal, odeio a cor verde.

 

– Cada um, cada um.

 

– Mas, então, vai trazer a marmita aqui?

 

– Acho que sim.

 

– Quando?

 

– Não sei. Por quê?

 

– Tô com fome.

 

– Já é quase a hora de voltar.

 

– E a fome?

 

– Podemos fazer jejum.

 

– Hoje?

 

– O que acha?

 

– Você vai fazer?

 

– Tem dias que nem almoço.

 

– Sério?

 

– Sim.

 

– Posso comer a sua marmita?

 

– O quê?

 

– É muita fome.

 

– Então, vou buscar lá no armário.

 

– Armário?

 

– Sim.

 

– Você não deixa na geladeira do escritório?

 

– Não.

 

– Sério?

 

– Isso.

 

– Bem, acho melhor a gente...

 

– Desistiu do almoço?

 

– Acho que sim.

 

– Bem, você é quem sabe.

 

– O quê?

 

– O quê? Sei lá.

 

 

Meu conto inédito publicado em 15 de março de 2021 na Revista Ideias com ilustração do Vitor Mann.


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