O homem-pássaro


Conto os degraus, mas esqueço ou – sei lá – me sinto perdido. Vim pelas escadas, o elevador estava parado e além do mais o apartamento para onde vou é no primeiro andar, perto do térreo, da portaria e da rua.

Vendi seguro de vida, fui balconista em farmácia, gráfico, pintor de parede, escrevente, segurança, consultor imobiliário, fiz tanta coisa que já nem sei o que estava fazendo quando num começo de tarde entrei naquele prédio. Lembro que precisava falar com um sujeito chamado Orací.

Olho o papel onde está escrito o nome, confiro uma, duas, três vezes. Não seria Itacy ou Odair? Não, é Orací mesmo. Só falta eu apertar o botão da campainha. Ou bater com uma das mãos na porta. Ele pode conferir quem está no corredor pelo olho mágico e decidir se abre ou não. Também pode abrir a porta imediatamente, depois de alguns segundos ou me fazer esperar. Se estiver fora ou dormindo ficarei esperando alguns minutos antes de descer as escadas e seguir pela rua. Então, escuto passos e o som da chave girando na fechadura.

A sala era ampla, com janelas grandes e as cortinas estavam fechadas. Sentei num sofá distante dois ou três metros do senhor Orací, que se acomodou em uma cadeira de balanço. Ele pediu para eu não usar o senhor, apenas Orací. Contei ter dificuldade ao falar com pessoas mais velhas que eu sem usar o senhor. Fique à vontade, comentou o Orací e em seguida entreguei algum produto, realizei um serviço ou contei algo, não lembro, não consigo lembrar o que fui fazer lá, naquele apartamento, naquela tarde.

Se eu te falar que conheço um homem-pássaro você acredita? Não? Nem precisa. Faz dias que não conversamos, mas nos encontramos todo mês, em geral, no apartamento dele. Somos amigos. Há lealdade entre nós e não cobramos nada um do outro, a não ser discrição, principalmente da minha parte. Afinal, não convém falar a respeito dele. Até porque seria difícil alguém acreditar que conheço um homem-pássaro chamado Orací.

Ele disse que gostou de mim e por causa da empatia decidiu contar parte de sua história – parte porque tudo não seria possível. Não fiz nenhuma pergunta, apenas escutei o Orací falar e ele revelou que nasceu em uma ilha no Oceano Índico. Lá, ainda pequeno, soube que poderia voar. Começou sobrevoando poucos metros, treinou decolagem, descida e venceu quilômetros voando.


Estou a mais de dez mil metros de altura, sentado, num voo em direção ao Oceano Índico. Vou conhecer a ilha onde Orací nasceu ou diz ter nascido. Não, ele nasceu em uma pequena e pouco conhecida ilha. Só não digo o nome por ter feito um acordo de silêncio para preservar o Orací. Acredito no meu amigo, mas quero ver para crer. Antes tem escalas, vai demorar e após algumas horas, não sei quantas, chego lá. Meu plano é aparentemente descansar por uns dias, como se estivesse em férias.

Orací precisava de dinheiro e atuou como professor. O meu amigo disse que se dedicava à profissão, mas os alunos não demonstravam interesse. Insistia, a atividade era desgastante, mas não desanimava, estava trabalhando. Começou a se decepcionar quando alguns dos aprendizes que não voavam passaram a ser reconhecidos e festejados na comunidade como homens-pássaros.

Olho a janela, vejo as nuvens e é inevitável lembrar do Orací. Ele diz ter desistido de voar. O homem-pássaro quer permanecer próximo da terra até o fim de sua vida.

Demorei para perceber que os sofás do apartamento do Orací estavam revestidos com plástico, procedimento utilizado em mudança ou por aqueles que pretendem preservar os móveis. Me dei conta daqueles plásticos em um dos encontros, quando ele contou que, inicialmente, não se incomodava com a visibilidade de seus alunos que não sabiam voar. Mas após alguns meses e anos teve a impressão, e posteriormente a suspeita se confirmou, de que algo estava acontecendo – e esse algo era uma sequência de ações que, em conjunto, faziam dele um sujeito quase inexistente ou invisível.

Bebo um gole de vinho aqui no avião, fecho os olhos e lembro da narrativa do Orací. Até parece que ele está ao meu lado, em seu apartamento, dizendo que – desanimado – desiste de ser professor e vai trabalhar no comércio. Dedica-se ao novo ofício e, longe do circuito de badalação de homens-pássaros que não voam, no caso, os seus ex-alunos, ele volta a voar. Tem convicção de que, mais que tendência, voar é o seu destino. Trabalha e voa, voa e trabalha, está tranquilo. Então, o proprietário da empresa diz que vai promover eventos com homens-pássaros e ele será o responsável pela divulgação do projeto.

Bebemos duas ou três garrafas de vinho quando o Orací me contou que, definitivamente, desistiu de voar ao fazer o trabalho de divulgação. Afirmou que promover os ex-alunos mexeu com ele. O homem-pássaro quase chorou, mas segurou as lágrimas diversas vezes enquanto me dizia que, mesmo recebendo dinheiro, não seria possível fazer o que estavam pedindo. Naquela tarde em que bebi alguns copos e ele, talvez duas das três garrafas de vinho, já embriagado, confessou uma transgressão, um crime, citou nomes, dos quais não lembro e repetiu que depois daquele fato deixou a ilha para sempre.

O avião está na pista faz alguns minutos. Há poucos passageiros e ninguém levanta. Todos esperam a sinalização para soltar os cintos, abrir os bagageiros, retirar malas e, então, caminhar pelo corredor. Posso estar errado, mas sinto que é necessário pesquisar a vida do Orací. Não estou traindo o meu amigo, nada disso. Ele é gente boa, acho, e, apesar de boa gente, talvez seja o responsável pela morte de cinco, seis, sete pessoas – ou mais. Agora só falta aquela porta, a de saída, abrir, mas a minha intuição diz que aquela porta vai permanecer fechada.

Conto publicado em Outras dezessete noites (Tulipas Negras, 2017), o meu sexto livro de narrativas.

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