De volta ao Malecón
Após
dezessete anos retorno ao Malecón. Meus cabelos se movem, pelos do meu corpo
estão arrepiados. Poderia dizer que um imenso ventilador funciona
permanentemente, mas sei que é a brisa do Malecón, única, ininterrupta,
inesquecível. Tanto tempo longe e nunca deixei de pensar neste balneário. Por
despeito, tontería, duas, três, quatro, cinco, nem sei mais quantas paixões e
alguns sustos, passei dezessete verões em outros endereços: San Blás, Puerto de
Gallinas, Bombas, Maresias, tantos mares, pousadas e estrelas. De agora em
diante nada, ou melhor, até tem o que me leve para outra beira de mar, mas vou
me entregar toda, por inteira e com exclusividade aos mistérios da água
salgada, da areia, das canções, do vento e do que pode acontecer, e acontece,
neste remoto ajuntamento de guarás, pájaros rojos, minha, nossa, única,
Guaratuba.
Guaratuba,
ai! Aproveitei a juventude, mas perdi a tramontana. Não me arrependo de nada,
até porque não há espaço nem tempo para me arrepender. Fiz e quero fazer mais.
Pretendo transar todas as ondas dessa praia, dessa vida, quanta sede eu sinto.
Também sou sedenta por imagens. Demorei mas vi Aquarius e a Sônia Braga continua um furacão – desde sempre,
desde a primeira vez que enxerguei aquela mulher, aqueles olhos negros. Faz
tempo, parece que foi semana passada, mas já passaram dias, anos, Dona Flor e seus dois maridos, A dama do lotação, Gabriela, cravo e canela, O beijo da mulher-aranha, Tieta do agreste, quantos filmes.
Sônia Braga é beleza, dignidade, força e coragem. As personagens que interpreta
acho que são como ela é, corajosa, forte, digna, linda, belíssima. Sônia Braga
conhece Guaratuba? Se não, algum bofe poderia convidar a deusa pra dar um rolê
por aqui.
É tão
bom dar um rolê no Malecón. Já dei tanto aqui, rolei e me enrolei com tanto
bofe, bofe civil, militar, pescador, motorista, bofe cozinheiro, garçom,
médico, dentista, bofe vagau, da universidade, da maçonaria, da umbanda e até
com bofinho cultural me envolvi, mas esses, os bofinhos culturais, é
indiscrição mas vou dizer: não dão no couro. Gosto dos brutos, dos fortes, não
dos fofos nem dos molinhos não.
Caminho
no Malecón e, sei lá, pode ser um cheiro ou a temperatura, está quente, quase
quarenta graus, suo e enfim, tudo isso ou nada, quem sabe não é externo mas algo
interno, alguma coisa acende e faz lembrar um bofe que me fez muito feliz. Era
um danado que gostava de uma canção do Fito Paez e a cantava pra mim: “Te vi/
Juntabas margaritas Del mantel/ Ya sé que te traté bastante mal/ No sé si eras
un ángel o un rubí/ O simplemente te vi”.
Ai,
Nonô, Nonis, Noninho querido. Doeu, foi bom, não durou. Faz tempo e não deixo
de lembrar nossos dias, noites, madrugadas acesas em Guaratuba. O mel do Nonô
me envenenou, eu estava enfeitiçada, fazia tudo o que ele pedia. Nunca uma
temporada de chuva rendeu como aqueles trinta dias de junho e outros de julho.
Não
posso mais escutar nenhuma do Fito Paez que meu pensamento é dominado pela
imagem do Nonô. Outro dia relaxava em frente à tevê quando passou um comercial
da Avianca. A trilha era uma canção do Fito, “Dar es dar”. Tão lindo aquilo,
chorei. Modelos infantis simulando trabalhar na companhia aérea. Mas o que me
desestruturou foi a melodia e, em especial, a letra da canção: “Cuando el mundo
te pregunta/ del por qué, por qué, por qué, por qué,/ por qué das vueltas la
rueda/ por qué no te detenés,/ yo te digo que dar es dar”.
Dar é
tão bom, me dei tanto ao Nonô e a outros bofes e, por falar nisso, os bofes
estão cada vez melhores. Será que é a água? Não sei o que é, mas acredito em
aperfeiçoamento dos bofes. Tenho experiência, sei o que estou falando. Eles
estão maravilhosos. Cada nova geração supera a anterior, em tudo. Delícia. Ah,
o verão promete. Chega verão! Que venga el toro! Pero que venga em forma del
bofe!
Queria
ter um pouco de paz, um dia que fosse, e paz seria não desejar, nada de desejo,
nada de bofe, nem em pensamento. Mas alguma coisa aqui dentro me faz desejar.
Será que é veneno? Fui envenenada ao nascer? Ou isso é o inferno? Um anjo torto
pode ter dito ao me ver pequenina: vai, Mara!, ser escrava do desejo por toda a
vida. Não sei se um anjo disse isso, sei que o desejo vive em mim. Ou é
apenas praga de madrinha, mau olhado da vizinhança ou mala suerte? Desgracia!
Cada um
carrega uma cruz. Às vezes tenho a sensação de carregar mais de uma. Mas não me
queixo. Até que é bom. Um bofe do Recife me definiu como a mulher com olhos de
sinal aberto. Não sei se entendi, mas que é bonito, é: mulher com olhos de
sinal aberto.
Seguir
o impulso e fluir aberta para as coisas da vida. Assim construí minha
trajetória. Às vezes tenho a sensação de que sigo, todos seguimos, um enredo
escrito previamente. Olho para a palma da minha mão, tantos riscos, um traçado
curioso, dá a impressão de que tudo o que fiz, faço e farei está ali. Suerte y
mala suerte. Acho que tudo já foi traçado porque às vezes ao comer, beber ou
durante algum momento, sei que iria estar aqui, ali, independentemente de minha
vontade. No puedo explicar, sólo se. Quando Deus quer até o diabo ajuda. Sou
personagem de uma cena e, sem ensaio, conheço as falas. Maktub! Acerto o
desfecho de quase todos os enredos, até quando dá ruim eu acerto, né não?
Hoje eu
sabia que algo ruim iria acontecer, se bem que todo dia acontece alguma coisa
que pode prejudicar alguém. Mas ao acordar tive a impressão, num abrir e fechar
de olhos, como se recebesse uma mensagem sabe-se lá de onde, de que algum fato
me faria mal, só não fui informada o que seria. E acho que essa adversidade
chegou. Mierda! Minha cabeça está doendo. Me cago em la leche! Foi só seguir
distraída pelo Malecón que os raios do sol já queimaram, sem eu perceber, meu
couro cabeludo. No jodas! Até olhei para o meu chapéu, ele estava no cabide,
praticamente me olhando, mas nem dei bola, saí solta, sem proteção. Que putada!
Isso vai trazer desconforto pra dormir.
Mas,
sabe, sempre que acontece uma contrariedade é sinal de que, em seguida, vai
pintar um novo bofe. Sempre foi assim, nunca falhou, seja quando dei topada com
o minguinho, ao quebrar uma unha, se um avião decolou sem me levar ou um ônibus
partiu e me deixou no ponto. Estou com o couro cabeludo queimado e, tenho fé,
um bofe vai surgir. Só não sei quando, onde nem como. Preciso me distrair,
esquecer até a dor que me incomoda. Relaxada, tudo pode mudar. Azar de dia,
sorte no amor à noite.
Ainda
faltam algumas horas pra anoitecer, talvez eu devesse descansar meu corpo. Mas
estou sem sono, dificilmente vou dormir e o meu couro cabeludo está doendo.
Vejo o Morro do Cristo e hesito. Faz décadas que pisei pela primeira vez aqui e
nunca estive no Cristo. Já disseram que a vista é linda lá em cima, talvez eu
devesse enfrentar as escadas, mas estou bem aqui no Malecón. Malecón é tudo,
daqui não saio, daqui ninguém me tira, ou melhor, só um bofe pra me tirar daqui
e estou sentindo que a noite vai trazer um novo bofe. La noche venga y traga un
bofe. Ole!
Narrativa
publicada em A certeza das coisas
impossíveis (Tulipas Negras, 2018), o meu sétimo livro de contos.
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