Narrativa de Marcio Renato dos Santos, ilustração de Vitor Mann


Pra você não sei, mas 2019 passou por mim. Gastei fragmentos do ano observando postagens, notícias que não aconteceram, ameaças de ação, e perdas, conto dias, horas, foram meses olhando telas que brilham.

2019 foi teia, labirinto que seduziu meninas, garotos, jovens, idosas, tantos, eu também. Todos aprisionados diante de telas esperando mensagens, cliques, clipes, qualquer alô, olá, paralisados permanecemos, muitos, quase todos nós.

E enquanto há tempo desligo os eletrônicos para seguir. Quem está no centro não é o autor, você sabe, mas um personagem, o narrador – e narrando o que passa na realidade ele conta agora sobre a movimentação dentro de um bar.

Ele é o eu narrador, mas isso não importa.

Vamos ao bar.

Não é um espaço que você frequenta, certamente não. É um boteco onde cerveja de 600 ml custa dez, talvez oito reais. Ou menos. Não, não é preconceito, mas você nunca esteve lá, talvez nem queira saber se o espaço existe. E tudo bem.

Eu, narrador, não o autor, também não entro no bar. Estou na rua e gostaria de descrever o que vejo.

Há mais de dez, doze mesas alinhadas de três em três, são quatro filas. É uma sala de aula? Todas as mesas ocupadas por homens, de costas para os fundos, olhando a rua por onde passo. Não sei o motivo, nem professor eu vejo, mas parecem alunos sem material escolar e bebem cerveja. Um deles abre uma lata, despeja um pouco em um copo e faz um brinde a um desconhecido, eu, o narrador deste texto.

Aceno ao sujeito que ergue o brinde, ele e os outros, alunos?, também acenam pra mim.

Sorrio e quem passa nesta rua sorri ou estranha, cenho franzido diante deste sujeito, eu, que sorri quase sem parar. Quase porque aos poucos o sorriso se desmancha, volto a circular com semblante pouco expressivo e assim ninguém ou quase nenhuma pessoa olha para este que narra, o que é excelente agora.

Agora, agora mesmo lembro que o mundo iria acabar, aquele sujeito garantiu, o apocalipse tinha data: fim da década de 1950, início da década de 1960. Mas inesperadamente surgiram os Beatles. E como outro sujeito, aquele, não cansa de explicar, apenas por causa dos Beatles e seus treze álbuns com canções perfeitas (portanto, irretocáveis) é que o mundo seguiu.

Durante este ano decidi dar um tempo dos Beatles. Escondi os treze CDs com a finalidade de passar pelo menos quarenta dias sem o som deles.

As plantas murcharam, teve vazamento de água do vizinho do andar de cima, num fim de semana faltou água e luz somente no meu apartamento, apesar de as contas terem sido pagas. Surgiram dores nas costas, nos ombros, nos pés e em minhas mãos. Tive insônia, perdi cabelos, peso e o emprego.

Até que em setembro Yesterday entrou em cartaz, fui ao cinema na estreia e, sabe, algo mudou.

O mundo, outra vez, quase acaba em 10 de abril de 1970, data oficial do encerramento das atividades dos Beatles – a profecia é conhecida, conhece? Desde então, início dos anos 1970, o Vitor Mann comenta, é necessário – todos os dias – ouvir canções de John-Paul-George-Ringo. São elas, explica o Vitor, que sustentam Ocidente e Oriente. São elas, as canções deles, continua a explicar o ilustrador deste texto, as responsáveis pelos movimentos de rotação e translação da Terra.

O Vitor Mann estava na sessão de Yesterday, não me viu, mas, fato relevante, escutei o ilustrador falar sobre o legado dos Beatles – e o que ele disse era o que eu precisava ouvir.

Evidentemente voltei a ouvir “Love Me Do”, “Taxman”, “Eleanor Rigby”, “You’ve Got To Hide Your Love Away”, “And Your Bird Can Sing”, “I Should Have Known Better”, “In My Life”, “Wait”, “Hello Goodbye”, “Golden Slumbers”, “Carry That Weight”, “Dig A Pony”, “The Long And Winding Road”, “Strawberry Fields Forever” e outras maravilhas deles, incluindo versões, como “Twist and Shout” e “Please Mister Postman”.

As plantas se recuperaram, meus problemas de saúde e outros impasses foram aos poucos resolvidos e, preciso falar isso, por mais que eu conheça, as canções dos Beatles trazem surpresas a cada nova audição.

Tem aquela intensidade na maneira de tocar – poucos, pouquíssimos conseguiram o que o quarteto apresenta toda vez que um de nós liga em um som uma canção deles, com eles, John-Paul-George-Ringo: aquela energia movimenta as pessoas e, evidentemente, o mundo.

Em 2020 não ficarei um dia sem Beatles – é o único plano para o porvir, “Here, There and Everywhere”.

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