De cenho franzido
O
tão festejado e anunciado humor da realidade tupiniquim não está
presente na prosa e na poesia produzida por autores brasileiros
contemporâneos. O recurso, no entanto, aparece em textos literários,
mas — atualmente — é quase uma exceção
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Marcio
Renato dos Santos
Apesar
de o brasileiro ser considerado, ao menos pelo senso comum, um
sujeito bem-humorado, o humor não é predominante na literatura
brasileira contemporânea. Evidentemente que há humor em obras de
autores em atividade, entre os quais se destacam Antonio Prata,
Angélica Freitas, Dalton Trevisan, Ernani Ssó, Fabrício
Carpinejar, João Ubaldo Ribeiro, José Roberto Torero, Luis Fernando
Verissimo, Mario Prata, Reinaldo Moraes e Roberto Gomes. Mas eles são
minoria — e não é exagero afirmar: são quase exceção.
Qual
o motivo para esse fato?
Há
algumas explicações. Ernani Ssó, escritor e tradutor, tem a sua
tese. “Acho que, em geral, as pessoas são bem-humoradas, não só
no Brasil. Basta conversar com qualquer uma num bar. O diabo é que,
no momento em que a pessoa pega uma caneta ou senta diante de um
teclado, baixa um santo tenebroso e ela já se imagina tomando chá
na academia”, diz, referindo-se à Academia Brasileira de Letras e
aos seus integrantes, conhecidos mais por atos solenes e atitudes
sérias do que por quaisquer outras atividades.
José
Roberto Torero observa que a maioria das pessoas considera o humor
algo menor. Para comprovar o que diz, o escritor — autor de 30
livros — lembra que em qualquer lista de obras mais vendidas no
Brasil não há livros de humor. “Há fábulas para adolescentes,
livros de sexo, autoajuda e religião, mas raramente aparece algo
bem-humorado. Uma pena”, lamenta Torero, autor de Papis et
circenses, livro vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2012
na categoria contos — reeditado em 2013 pela Alfaguara, obra que
problematiza — com humor — a trajetória dos papas.
Torero
acredita que é possível tratar de qualquer assunto com humor. “Mas
creio que uma nova geração [de escritores brasileiros] tenta se
marcar como séria, e crê que isso se consegue abdicando do humor.
Não me parece muito verdadeiro”, critica. No entendimento de
Torero, ninguém é mais sério que Machado de Assis, Millôr
Fernandes, Mário de Andrade e Luis Fernando Verissimo. “E os
quatro têm textos muito engraçados.”
Ernani
Ssó concorda com a argumentação de Torero. “Não há assunto que
não possa ser visto com humor. Começando pela morte. Se a morte
pode, por que não o resto, o amor, o sexo, a corrupção, a
violência, a injustiça? Só precisa talento. Mais nada”, diz o
sujeito que, recentemente, traduziu D. Quixote, de Cervantes.
“O tema do Cervantes, o nosso desajuste com a realidade, digamos, é
dos mais sérios, dos mais trágicos, e nos acompanha desde as
cavernas e nos acompanhará na colonização de Marte. No entanto ele
o encarou de modo jocoso, e seu romance continua de pé, depois de
mais de quatrocentos anos, porque Cervantes foi o mais fundo possível
e o fez de modo divertido”, afirma Ssó.
O
riso é eterno, desde sempre
Se atualmente não
há tanto humor nas obras de ficção e poesia do país, o professor
de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar) Wilton José Marques afirma que o humor
sempre esteve presente na literatura brasileira. O pioneiro foi
Gregório de Matos Guerra, no século XVII. Desde então, outros
autores utilizaram o recurso em suas obras, entre os quais Machado
de Assis, Bernardo Guimarães, Manuel Antônio de Almeida, Oswald de
Andrade, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade
e Campos de Carvalho. “Acho importante reafirmar que os escritores
brasileiros desde sempre recorreram ao humor, que, como se sabe,
constitui-se num expediente fundamental de crítica social”,
ressalta Marques.
O professor do curso
de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Jacyntho
Lins Brandão observa que, se for para levar em conta não apenas
“textos para ler sozinho”, então há uma série de obras da
produção dramática brasileira para incluir na lista, incluive o
chamado “besteirol”. “Esse é um ponto interessante porque
parece que o humor se presta mais a uma recepção compartilhada. É
difícil imaginar um leitor, sozinho com seu livro, às gargalhadas,
como acontece com o espectador de teatro ou mesmo do cinema. Então,
talvez haja algo específico com relação ao humor que faz com que
seja ele mais próprio e mais profícuo no gênero dramático”,
opinião Brandão.
O
escritor Roberto Gomes pondera que o
humor, em obras literárias, nem sempre precisa provocar gargalhadas.
“Muitas vezes [o humor] é amargo, ácido, mas lava a alma do
leitor por exibir outras possibilidades, outras facetas, outras
arrumações de palavras e frases, muitas brincadeiras com expressões
consagradas. E, se pode ser impiedoso, tem compaixão pela tragédia
humana”, afirma Gomes, autor, entre outros, do romance O
conhecimento de Anatol Kraft.
No entendimento dele, o humor
parece ser certa ótica, uma torção nos olhares habituais sobre o
mundo. “O humor desvenda, mas não desvenda de qualquer forma.
Desvenda num nível elevado, pois tinha razão o filósofo francês
Henri Bergson (1859-1941) ao dizer que para o humor ser possível é
preciso que o sentimento dê lugar à inteligência”, acrescenta.
É difícil
escrever com humor
Talvez não
haja humor, em excesso, na prosa nem na poesia brasileira por uma
simples razão: é difícil produzir literatura humorística de
qualidade. A observação é do professor Jacyntho Lins Brandão, da
UFMG. “Quando se fala de literatura, isso implica ter uma
perspectiva de permanência, ou seja, não se trata de algo a ser
consumido de momento e que tenha sentido só no calor da hora”,
raciocina Brandão. O especialista cita os programas cômicos
semanais exibidos na TV, que possuem caráter efêmero e eficaz, mas
que funcionam, em sua maioria, para o consumo instantâneo. “Fazer
humor sem essa vinculação tão imediata, ou seja, produzindo o riso
com base num enredo e nos processos próprios da produção
literária, parece ser algo mais complexo”, afirma.
Entre
os escritores brasileiros contemporâneos, Brandão destaca Xico Sá
e Reinaldo Moraes. O primeiro, na avaliação do professor da UFMG,
segue a tendência dos escritores de humor que são jornalistas e
fazem humor na forma de crônicas, apesar de ele ter publicado em
2013 o seu primeiro romance, Big Jato. Já Reinaldo Moraes
elabora uma obra que, entre outras características, explora tudo de
humorístico que há no sexo — isso pode ser conferido nos contos
do livro Umidade (2005).
No entanto, o ponto alto da
trajetória de Moraes é Pornopopéia (2009). Brandão faz uma
observação a respeito do romance: “De Pornopopéia já se
disse que é o nosso Memórias de um sargento de milícias
(1854), de Manuel Antônio de Almeida, contemporâneo. Esse livro de
Moraes, sem dúvida, é um investimento de maior fôlego, que faz
incursões intertextuais e, no fundo, não deixa de propor o que
poderia ser uma epopeia brasileira para o século XXI.”
Em Pornopopéia, Moraes
conseguiu, entre outros efeitos, fazer uma crítica ao excesso de
consumo do tempo presente. O prosador tratou de um assunto denso sem
perder a leveza. Isso vai ao encontro da definição de humor
apresentada por José Roberto Torero: “Acho
que é um modo de dessacralizar o tema e de criticar sem ser óbvio.
Mas não acho que seja uma estratégia. É um modo de ver o mundo”.
Antônio Marcos Vieira Sanseverino, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, completa
que o humor pode fazer com que o leitor abandone
a “mesmice do mesmo”, deixando de olhar o próprio umbigo, para
ver o mundo de uma perspectiva diferente. “O modo mais eficaz de
fazer isso é rindo: de início, rindo dos outros; num estágio mais
sofisticado, rindo de nós mesmos”, explica o professor da UFRGS.
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Matéria publicada na edição 31, de fevereiro de 2014, do Cândido, jornal mensal da Biblioteca Pública do Paraná. A ilustração é de Renato Faccini.
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