É fancha, Candinho!

         – Hoje é tudo inadimplente, mas na minha época era caloteiro. Inventam esses nomes pra disfarçar o que não tem disfarce!
         Candinho escuta a frase depois de pagar pelo almoço. Faz dieta. Os índices de colesterol e triglicerídeos ultrapassaram todos os limites. Agora, só no vegê.
         – É gai pra cá, gai pra lá, acho que é assim que se fala, não é? Mas antes era tudo manjado. Só dá manjado na rua, já reparou, guri?
         Candinho ri, em silêncio. Não demonstra concordar, nem discordar, do proprietário do restaurante onde almoça de segunda à sexta.
         – Essa chinesada, Deus me livre. Uns entram aqui, olham meu bifê e saem. Disfarçando, sabia? Mas não adianta. Não conseguem imitar. Uma chinesa, minha cliente, disse que já tentou, mas não consegue comer no restaurante dos patrícios. É muito sujo.
         Candinho não gosta dos refogados, das folhas nem da sopa, mas precisa almoçar sem excessos e esse é o único vegê próximo de onde trabalha.
         Há 21 anos Candinho bate o cartão ponto no mesmo escritório de contabilidade. Durante a maior parte dessa temporada, permaneceu sentado durante as oito horas do expediente e, no tempo livre, estava, em geral, sentado no sofá diante da televisão dentro do apartamento de dois quartos, sala, banheiro, cozinha e sacada que financiou – e ainda faltam dez, onze anos para quitar.
         Candinho caminha durante vinte minutos, antes e depois do almoço de segunda à sexta, e lamenta que agora, na véspera da aposentadoria, seja obrigado a fazer dieta. Um dos poucos prazeres de sua vida é ou, levando em conta a ruína da saúde, eram os molhos, a carne, as fritas, os ensopados, as massas e as sobremesas dos almoços.
         A voz da mulher em uma ligação telefônica avisa que Candinho foi premiado. Ganhou uma viagem para Roma, estada de 25 dias, com transporte aéreo, hospedagem, alimentação e até dinheiro para gastar, se quiser. Tinha férias vencidas, precisava mesmo se ausentar do escritório. Fez o passaporte, agendou datas, reservas e viajou.
         Candinho retornou da viagem, período no qual bebeu e comeu em excesso. O primeiro almoço, de volta, teria de ser no vegê do seu Newton. Ao chegar lá, o técnico em contabilidade estranhou a presença de uma mulher no caixa.
         – Cadê o seu Newton?
         – Você não soube?
         – Do quê?
         – Morreu.
         Candinho continuou a almoçar no restaurante, apesar de que frequentava aquele vegê por outro motivo. No tempo em que quase todo poder é delegado ao jovem, os chatos sobre duas rodas querem fazer de uma mera bicicleta um tanque de guerra e quando é perigoso chamar as pessoas e as coisas pelo nome que elas têm, o protagonista deste enredo sentia-se vivo, e livre da patrulha, quando, por exemplo, após duas mulheres passarem juntas de mãos dadas se beijando, o seu Newton olhava para ele e dizia, gritando:
         – É fancha, Candinho!


Ficção publicada na página 57 da revista Ideias (Travessa dos Editores), edição 145, novembro de 2013. Imagem: Las tentaciones de San Antonio, de Diego Rivera.

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