Wave

            Faz tempo, meses, anos, que as águas daquele litoral estavam paradas. A responsável pela educação das crianças, Tia Erê, nem lembrava o que era uma onda. Marolas embalaram Cronos, o controlador do fluxo na região, quando ele não tinha rugas, cabelos brancos nem manchas nas mãos. Para Do Irajá, o contador oficial de nuvens, mar era aquela massa de água lisa da baía onde ele nasceu e vive há quatro décadas.
            Na praia da Grande Pedra era possível o mergulho, a flutuação e o descanso como se estivesse em uma piscina e Rá, a corneteira, boiava, barriga, pés e olhos para cima, quando uma onda surgiu e a levou até o raso, onde as crianças e os que não sabem nadar brincam sem medo. Rá se levantou, e viu. Os que estavam na areia, entre os quais Cronos, Erê e Do Irajá, olhavam para ela.
            Rá, a corneteira, nem precisou contar o que aconteceu. Vinte, trinta minutos depois, não havia espaço livre no mar. Os habitantes da Grande Pedra esperavam por ondas. Mas naquela tarde não teve ondulação, apenas a superfície lisa na qual tudo parecia parado desde muito, desde quase sempre.
            No dia seguinte, deu praia. Tia Erê, Cronos, Do Irajá, Rá e quase todos os habitantes da Grande Pedra entraram no mar ainda de madrugada. Eles aguardavam, aguardaram, em silêncio. O sol informava que devia ser meio-dia quando uma onda surgiu e levou Cronos até a areia seca.
            O controlador do fluxo na região se levantou e viu. Todos olhavam para ele. Cronos começou a repetir que é impossível ser feliz sozinho, é impossível ser feliz sozinho, é impossível ser feliz sozinho, sentou na areia seca e disse que não iria mais entrar na água, tem para todos, deve ter, o resto é mar.
            Tia Erê, Do Irajá, Rá e outros habitantes da Grande Pedra não escutaram as palavras de Cronos. Após terem visto a onda que levou o controlador do fluxo na região de onde não dava pé até o rasinho, eles voltaram a olhar o oceano atentos e ansiosos por marolas. E naquela tarde cada um foi arrastado até a areia seca por uma onda onda e ao anoitecer todos voltaram para as suas casas, e adormeceram sorrindo.
            As ondas seguiram na Grande Pedra. Alguns moradores dormiam na areia seca na véspera do descanso semanal. Todos queriam entrar cedo para ocupar espaço na água, até com pedaços de madeira para flutuar e seguir no embalo das ondulações. Do Irajá sugeriu uma competição para premiar quem conseguisse permanecer mais tempo equilibrado em pé sobre os troncos, que seriam chamados de prancha de surf em outros tempos, por outras pessoas.
            Por seis dias, Rá, a corneteira, anunciou nas ruas da Grande Pedra que no domingo aconteceria uma disputa para reconhecer quem permanece mais tempo em pé sobre um tronco de madeira conduzido por ondas. E durante todo o dia o retorno das ondulações seria celebrado à beira-mar com danças, bebidas de álcool e animais e peixes assados.
            Os moradores da Grande Pedra estavam no mar e na areia seca no domingo. Uns cantaram, outros correram e dançaram, e a maioria comeu carne e ingeriu bebida alcoólica. Não teve onda. Nenhuma. Apenas água lisa. E foi decidido, ali mesmo na orla, que o dia seguinte seria feriado porque a competição estava programada, tinha de acontecer.
            Mas não teve mais ondulação no dia seguinte nem no outro, apenas água lisa. E viver em Grande Pedra voltou a ser o que era antes das ondas. Tentativas de agressão, gritos, trocas de socos, bate-bocas, o siricutico diário e sem fim.
            Será que a resposta está soprando no vento?, pergunta Nóia, violeiro que não tira o cigarro da boca. Mas a explicação para a breve temporada de ondas está, ou esteve, há alguns quilômetros de Grande Pedra. Estrangeiros exploraram minérios e soltavam o carregamento em cima de um barco, o que produzia ondulações, as mesmas que chegaram na praia. O trabalho terminou, terminaram as marolas, mas isso nem Nóia, Tia Erê, Cronos, Do Irajá ou Rá souberam. Pelo menos até agora.

Conto publicado originalmente na página 27 da revista Ideias, da Travessa dos Editores, edição 131, setembro de 2012. Ilustração de Marciel Conrado.

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