Aquilo que viaja do avô para o neto

Entrar em Baú de Ossos é viajar pelo mundo de Pedro Nava (1903-1984) e ao mesmo tempo rumo ao nosso próprio passado. O livro de memórias desse autor mineiro chegou às minhas mãos em 2003 e, nesses sete anos, não consegui ultrapassar nenhuma página. Primeiro, era um compromisso inadiável. Depois, uma ideia-fixa que me afastava da leitura. Isso quando no andar de cima não acontecia uma performance de saltos altos a batucar ou um show de rock-and-roll seguia, em moto-contínuo, com toda distorção possível dentro de mim.

Foi apenas nesta primavera de 2010 que, sabe-se lá como, entrei, e sigo diariamente, pelas páginas da obra. Nava recupera os seus ancestrais e é difícil abandonar a leitura. Inclusive, neste momento, a fruição do livro é tão esperada, por mim, como já foi, em tempos recentes, a expectativa por todo capítulo da novela Caminho das Índias.

Entre a lembrança de um bisavô e de outra avó, Nava apresenta aos leitores algumas constatações, que fizeram com que ele carimbasse o passaporte para o primeiro time da literatura. Na página 32 do livro publicado pela Ateliê Editorial em 2002, a narração aponta para uma das belezas da vida: o jeito hereditário com que vemos os vivos repetindo o retrato meio apagado dos parentes defuntos. “Pode-se tentar a recomposição de um grupo familiar desaparecido usando como material esse riso de filha que repete o riso materno; essa entonação de voz que a neta recebeu da avó; a tradição que prolonga no tempo a conversa de bocas há muito abafadas por um punhado de terra”, escreveu o memorialista mineiro.

Fecho o livro e olho para o meu filho Vitor, de 1 ano e 11 meses, e me vejo nele. Os pés, chatos, viajaram do meu avô materno, Francisco, passaram por mim, e chegaram até o neto. De onde veio esse meu jeito reservado? Sei que do meu avô Francisco, que a terra engoliu há duas décadas, herdei um silêncio sem fim, que só desmancha diante de pouquíssimas pessoas.

Volto ao Baú do Nava e lá encontro o que cada novo abril, que me traz mais fios brancos à cabeça, confirma: é aquilo que viaja do avô para o neto que parece dizer mais e pode explicar quase tudo. Não tem jeito, repetimos o jeito torto de pisar de nossos antepassados, por mais que tentemos negar.

Chego à página 46 e paro. O que o Nava escreveu me fez seguir acordado da terça rumo à última quarta-feira. “O conjunto familiar jugulado por várias regras, mandamentos, cânones, convicções, tradições, preceitos, normações e complexos, para não rebentar também, precisa do antagonista. (...) Qual a floração de homens integérrimos, de cidadãos exemplaríssimos, de varões retíssimos, de mulheres fortíssimas, de virgens prudentíssimas que não sai de um tronco cujas raízes mergulharam na lama consanguínea de uma catraia, de um ladrão, de um bandalho, de um homicida ou de um falsário?”.

O que Nava fala, a respeito de si mesmo, vale para todo mundo: se em nosso álbum de família não figura um transgressor, para falar o mínimo, é porque escondemos a foto. Não estou, agora, em busca de meu parente blasfemador esquecido em passado mais do que imperfeito, mas bem que gostaria de saber daqueles que, mais do que cabelos loiros que se tornaram castanhos (e que um dia ficarão como a neve), me legaram esse jeito contemplativo, gauche e lento.

Há quem diga que é o exemplo, a influência direta fruto do convívio, que faz de nós o que somos e nos tornamos. Prefiro pensar, mesmo que seja o maior absurdo, que esse meu quase voto de silêncio diante da vida é um legado via DNA.

Evito afirmações, desvio de certezas, mas garanto que vou reduzir ainda mais a velocidade da leitura para adiar, ao máximo, chegar ao fim de Baú de Ossos (mesmo sabendo que há outros volumes de memórias do Nava à minha espera).

E, como ainda há espaço disponível, desejo um dia possível, suave e desacelerado a você que me lê (e, me lendo, em alguma medida, me inventa).

Essa crônica foi publicada na página 5 da edição do dia 25 de setembro de 2010, no Caderno G, suplemento de cultura da Gazeta do Povo, jornal curitibano, onde escrevo desde 2007.

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