Em trânsito
Hoje tem Em
trânsito (Companhia das Letras, 2010), do Alberto Martins:
Muitos (mas nem todos) poemas do livro tratam da
travessia no espaço urbano, com observações de quem movimenta-se nos dias
chamados úteis – de casa para o trabalho e o respectivo retorno.
Um dos destaque está na página 36, "At the
office":
"para as horas/ de insônia/ da tarde// nada
melhor// que o mergulho/ concêntrico/ no abismo sem fundo/ da xícara// nada
melhor// que o ritual/ da colher/ em torno/ do esquecimento// para quem/ de
tudo desistiu/ mas quer manter-se em pé// nada melhor// que o derradeiro gole/
sem alma/ sem açúcar/ no café".
Esse refúgio na cafeína dialoga, por contraste (ou não),
com outras situações, como o insone em "Sherazade":
"de madrugada perambula/ pelos mil e um cantos/ da
casa".
O mesmo tema está presente em pelo menos mais 4 poemas: "O
outro", "Invocação do sono", "A noite de insônia do
alfaiate endividado" e "Vira-lata na madrugada".
E, enfim, apesar da tirania da insônia, o corpo de não
poucos poemas de "Em trânsito" traz enunciados por uma (mesma?) voz-olhar
que capta música urbana, em esquinas meninos precisam vender balas ("Povo
errante"), desconhecidos seguem com os seus cães ("Passantes") –
além daquele momento em que o labor exige a renúncia de toda paisagem (Working
day"):
"dar adeus/ a este dia azul/ se embrenhar/ nas trevas
do metrô".
A ilíada do trabalhador urbano, ser de escritório, pode representar
um nada fazer, sensação traduzida em "Na volta do supermercado":
"brancas sacolas de plástico/ jogadas/ ao acaso/ na
mesa da cozinha// – vazias/ de todo conteúdo/ evocam/ as formas sinistras do
meu dia?".
Há textos poéticos sobre e a partir de vida e obra de
artistas, mas para a ilusão de unidade desta glosa finalizo comentando (e cito
integralmente) "Sujeiras", inquietação sobre o descarte, o que ainda
pode comprometer (se é que já não comprometeu) o planeta:
"dia sim dia não/ eles tocam a campainha de casa/
pra vender sacos de lixo./ Eu compro./ Existe mesmo muita sujeira por aí./ Um
dia vou junto conhecer a fábrica deles./ Já sei como se fabrica a sujeira./
Quero saber como se fabricam os sacos".
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