Anos de chumbo e outros contos
Hoje tem Anos de
chumbo e outros contos (Companhia das Letras, 2021), do Chico Buarque:
As 8 narrativas apresentam recortes do convívio de seres
ficcionais que em determinado contexto mantêm (ou tiveram) conexões.
Um exemplo dessa possibilidade de representação
literária é o primeiro conto, "Meu tio", em que um pai e uma mãe
permitem (estimulando) que a filha seja explorada sexualmente:
"Quando saí do mar ele disse que sentiu uma vontade
de comer o meu rabinho. Perguntou se eu queria mais alguma coisa, pediu ao
barraqueiro um litro de água mineral, acertou as contas e pôs a mão no meu
ombro a caminho do carro".
Mais que a descrição da transa, que se limita a uma
linha, o texto literário problematiza um sujeito que usa o (excesso de)
dinheiro para ter acesso a tudo o que os seus impulsos sugerem.
Em Anos de chumbo
e outros contos, Chico Buarque – evidentemente – não está narrando apenas
uma estória em cada uma das narrativas – ele dialoga, por exemplo, com o melhor
do conto russo, e Tchekhov é apenas uma das referências.
O conto que dá título ao livro mostra a astúcia e a
violência de agentes da ditadura militar brasileira pelo ponto de vista do
filho de um oficial (mais que isso talvez não seja razoável comentar se você,
interlocutor(a), ainda não leu "Anos de chumbo").
Turbulências familiares e segredos que tendem a
permanecer silenciados (até a inevitável revelação) compõem a matéria-prima de
"Os primos de Campos", a exemplo das outras narrativas, elaborada com
sutileza e chaves para decifrar alguns mistérios:
"Uma vez ouvi minha mãe dizer com sarcasmo que
devia haver algum problema com a água de Campos, pois os sobrinhos que deixavam
o Rio com cabelos encaracolados, seis meses depois regressavam com carapinha.
Eu, que tenho cabelos bastante crespos, nunca dei atenção a essas nuances
[...]".
Os desfechos são arrebatadores, a linguagem (óbvio
ululante) é afiadíssima e, entre outras proezas desta obra, há recriação de efeitos
da pandemia e do medo de amar em "O sítio" – já em "O
passaporte" um grande artista vai confirmar que fãs e não artistas nem
sempre admiram e/ou gostam de ídolos e pessoas públicas.
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