Quase surge um nada
Natália
diz que vai criar um personagem absolutamente original. Mostro os dentes, fecho
a boca, ela quer saber o motivo da minha risada e sigo em silêncio. Repete que
o seu plano é construir um protagonista inédito em âmbito mundial. Durante uma
pausa em seu discurso comento que também vale recriar algum personagem do
Shakespeare ou do Dalton Trevisan, da Lucia Berlin, do Machado, da Clarice, do
Jamil Snege, da Hilda, da Lygia ou do Pirandello, entre tantas opções.
Natália
boceja.
Digo
que é possível elaborar um personagem a partir de pessoas:
– Misture
atitudes de um, nuances do comportamento de outro, um tique de um terceiro, a
dicção e o silêncio de uma conhecida e, enfim, está pronto o seu Frankenstein.
Aos
gritos ela diz que sempre desconfiou, mas agora tem certeza. Afirma que sou uma
fraude:
– León,
você nunca me enganou! É um plagiador. Copia autores e a realidade.
Esta,
ainda não sei, é a nossa última conversa. Vamos romper a relação daqui a
algumas linhas. Antes, no entanto, ela vai pronunciar tantas palavras, nem
sempre gentis:
– León,
você escreve contos por ser incapaz de fazer um romance.
Natasha,
prefiro chamá-la assim, desabafa.
Não conto
tudo o que ela falou, é um lamento, discurso repetitivo, vocês já ouviram
pessoalmente ou em novela, filme e leram em prosa.
Após
parte do descarrego, ela descreve características do personagem que elabora há
meses. Ainda não tem nome definitivo. Talvez se chame Senilson, Suinilson ou
até mesmo Mentirinha.
– É um
medíocre, mais medíocre do que você, León, bem mais. Perto dele você é um
gênio.
A
Natália me esculhamba durante a explicação. Mas, enfim, o personagem dela, Senilson,
Suinilson ou Mentirinha, é um sujeito que não sabe escrever e, apesar disso, ganha
a vida como jornalista.
– O Senilson
não é propriamente um jornalista, mas um bajulador.
De
acordo com Natasha, o protagonista de seu romance nunca protagonizou nada. Entre
outras bizarrices, mesmo sem saber escrever publica livros. Contrata pessoas que
produzem obras repletas de frases feitas e múltiplos equívocos, e ele apenas
assina, como se fosse o autor.
– É um tolo
vaidoso! Confunde poesia com pieguismo e desabafo. Não tem imaginação, é
inculto, destituído de força física e pequeno, mínimo em tudo. E,
principalmente devido ao tamanho, revolta-se contra pessoas mais altas e inteligentes
que ele. Ou seja, vive em conflito com o mundo.
Pergunto
o que motiva o Senilson, mas ela não explica. Diz que, quando eu ler o romance,
possivelmente vou compreender a psicologia do personagem.
Mas,
destaca, uma das marcas do Senilson é a seguinte:
– Decrépito
desde a infância e sem disciplina para ler, não possui argumentos. Não
raciocina com clareza. Então, usa lágrimas para tentar comover e, assim,
convencer os interlocutores. Mas, fique sabendo, não é um ser que se emociona.
Chora balbuciando com o objetivo de levar a sua carteira, entende?
Natália
ainda fala sobre o comportamento do personagem, que pode vir a se chamar Mentirinha,
o das pernas curtas, pelo fato de plantar notas maldosas na imprensa e atribuir
o gesto a outras pessoas – ações em geral sem efeito, mas que ele se orgulha de
praticar.
Escuto
tudo, tudo o que ela fala.
Pergunta
qual é a minha opinião. Fico em silêncio. Não comento que esse personagem,
mesmo se for original, é uma figura desinteressante.
Natasha
sai sem se despedir e, ainda não sei, mas saberei, para nunca mais. E me deixa
assim, nu, suado e quase sem energia neste quarto de hotel, onde vou passar a
noite sozinho para sonhar, se possível, com alguma personagem – do Machado, da
Hilda Hilst ou da Lucia Berlin – que poderia estar aqui, agora, comigo.
Conto
meu publicado na Ideias de março de
2019 com ilustração do Vitor Mann.
Comentários
Postar um comentário