Mixed emotions
Sofia
abre a porta do congelador, pega cebolas e caminha até a pia para cortá-las
embaixo da água que sai da torneira. Está com óculos de natação e sorri ao fatiar
o vegetal. Há alguns minutos estava nublado, mas agora a luz do sol ilumina a
cozinha enquanto ela canta: “You’re not the only one/ With mixed emotions/ You’re
not the only ship/ Adrift on this ocean.”
Flor
pergunta se a canção é do Weezer, Sofia despeja pedaços de cebola na frigideira
já com azeite de oliva aquecido, e segue cantando: “You’re not the only one/
With mixed emotions.” Sofia, então, percebe que uma conhecida, não lembra de
onde, está na cozinha fazendo perguntas. Elas se cumprimentam.
Miss
Caffeina? Belle and Sebastian? Yoann Lemoine? Flor quer saber de qual banda ou
artista é a canção que Sofia está cantando. “Mixed emotions” é dos Stones, ela
diz. Flor conta que nunca ouviu essa música e, pra falar a verdade, não suporta
as baladinhas do Mick Jagger e do Keith Richards.
Flor
pergunta pra Sofia: o que você está fazendo? Refogando cebola, ela explica. E
esses óculos de natação?, a visitante questiona. Sofia diz que eles protegem os
olhos durante o processo. Que processo?, Flor pergunta. Enquanto preparo esse
refogado, responde a mulher que, com uma espátula, movimenta fatias de cebola
na frigideira.
Sofia
está com sede, abre a torneira, enche metade de um copo e bebe a água. Flor conta
que gosta de encher o carrinho de supermercado sem conferir o preço dos
produtos, mas ela não paga pela compra: antes de passar no caixa, deixa o carrinho
num corredor e vai embora. “É uma ótima sensação. Pegar mas não adquirir os
produtos. Afinal, não preciso de tantas coisas, preciso?”, ela diz pra si
mesma, saindo de cena.
Fulano
entra na cozinha e dá um beijo no rosto de Sofia. Você aqui?, ela reage, antes
de tirar os óculos de natação. Queria fazer uma surpresa, ele responde, abraçando
a ex-namorada. Ela pergunta se ele está com fome e Fulano diz que já comeu,
mas, se ela oferecer algo, ele aceita. Sofia diz que pode preparar um peixe, um
frango ou um pedaço de carne bovina. Ele conta que se tornou vegetariano e, se
não for pedir demais, gostaria de um aspargo, uma berinjela ou até mais um beijo,
não, um queijo.
Aceita
um pouco desse refogado?, Sofia sugere ao Fulano, que insiste em pedir uma berinjela,
um aspargo ou aquele beijo. Sofia sorri e diz que, se não quiser o refogado,
vai ter de escolher algum tipo de carne. Fulano responde que talvez coma um
pouco de cebola que, para ele, é um estimulante sexual. Ela, outra vez, sorri
mexendo no refogado, quase pronto, e comenta que comprovadamente a cebola
contém vitaminas do complexo B, ferro, cálcio, zinco, manganês e magnésio. E a
carne?, pergunta Fulano. O que é que tem a carne?, Sofia quer saber. Ele diz: a
carne é fraca, não é?
Então,
ela percebe que o celular está tocando e atende, mas a ligação cai. Ao desligar
o telefone, Fulano não está mais na cozinha e ela tem a impressão de que
precisa desligar a chama que aquece o refogado.
Sofia,
sabe a última da Yasmin? Quem faz a pergunta é Beltrana, que acaba de entrar na
cozinha. Sofia diz oi, tudo bem? Beltrana, então, comenta que a Letícia está
traindo o marido com um amigo delas. Você está com fome?, pergunta a mulher
que, agora, segura um pedaço de alcatra nas mãos.
Um
açougueiro disse, Sofia escutou e lembra, que no momento de cortar um pedaço de
carne é importante observar as linhas, as fibras e, então, deslizar a lâmina da
faca transversalmente. Ela corta o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o
quinto, o sexto e um sétimo pedaço de alcatra com uma faca afiada, enquanto
Beltrana fala, inicialmente, que Fulano está namorando Sicrana e, depois, ainda
faz comentários a respeito do comportamento do senhor Alone, atualmente amante
da professora Beatriz, que é esposa do juiz Arthur, o irmão da bailarina
Isabela, neta do pecuarista Jorge e de uma ancestral comum a elas, a matriarca
Salomé.
Se não
observar as fibras, e cortar de qualquer maneira, acrescentou aquele
açougueiro, a carne pode ficar dura. Sofia acredita na opinião do especialista e,
ao cortar mais pedaços da alcatra, seguindo a recomendação, volta a cantar
aquela canção que não sai de sua cabeça: “You’re not the only one/ With mixed
emotions.”
Aciona
uma chama do fogão, derrama azeite de oliva em uma panela e, ao perceber que é
o momento, coloca o primeiro pedaço de alcatra. Em seguida frita outros bifes
e, em meio à fumaça, sem perceber, os comentários a respeito do comportamento
de algumas pessoas feitos por Beltrana e a própria Beltrana desaparecem.
Sofia
tira o primeiro, o segundo, o terceiro, os outros bifes da frigideira e Laura
Borrow está olhando para ela. Oi, você por aqui? Poderia me emprestar aquele
vestido vermelho? Sofia pergunta se ela aceita um bife. Não, estou fazendo
dieta e, além do vestido, também gostaria de emprestar um par de sapatos e
aquele perfume que você usou num show do Dave Matthews Band, lembra?
Sofia
vai até um balcão e abre uma gaveta, onde tem uma pistola. Fecha e abre outra.
Há um punhal e um objeto que pode ser uma granada. Em outro compartimento há uma
caixa preta, pequena, parece
um cofre. Ali tem algo, não lembra exatamente o que é, mas que não deve ser
tocado, pelo menos por enquanto.
Laura
Borrow segue pedindo e são tantas as solicitações, entre as quais um lençol
quinhentos fios, saca-rolha, carregador de celular, cartão de crédito com a
senha, álcool gel, bolsa térmica, estojo de maquiagem, moedor de gelo, duas
calcinhas, uma camisola e um bule de chá.
O som
de cada item solicitado por Laura Borrow e a sua voz atingem Sofia como uma
pancada. Ela está tonta, caminha até uma cadeira e senta. Antes disso, estava
em frente a um armário, de madeira, e hesitou ao abrir as gavetas. Não estavam
trancadas, mas sabia que, se abrisse qualquer uma, daria início a algo
incontrolável e de efeito irreversível.
Sofia
tem a sensação de que a cozinha começa a se mover. Tudo está rodando
lentamente. Vê panelas caindo, os bifes no chão e a água sai diretamente pela
torneira. Gostaria de receber um convite para um evento qualquer, poderia ser
até para uma reunião sem nenhum resultado. E, se fosse possível, encolheria
para entrar numa gaveta que tivesse uma passagem rumo a outro cenário, como se
estivesse em um filme ou no desfecho de um conto.
Conto
publicado em Outras dezessete noites
(Tulipas Negras, 2017), o meu sexto livro de narrativas.
Comentários
Postar um comentário