O inverno é logo ali
Nina confere a placa, pergunta ao motorista se a viagem é para
ela, Nina, e entra no Citroen C3. Ou o Uber parou e o motorista, Pablo,
perguntou se ela era a Nina? Agora, o carro segue pela Clóvis Beviláqua, a rua
onde ela mora, no Cabral. Pablo quer saber se Nina tem preferência por algum
trajeto, ela diz que não sabe, ele oferece bala, Nina recusa, enquanto, no
rádio, Ná Ozzetti canta “Atlântida”, da Rita Lee.
A paisagem se
transforma, o Cabral se torna Alto da XV e daqui a pouco já é Centro. Nina
sente o vento do fim da manhã no rosto e, por alguns minutos, esquece que seu quinto
pododáctilo direito dói. A arquiteta bateu o dedo mínimo do pé em uma cadeira,
em um canto da cama e em uma porta — em sequência, no mesmo dia. Inchou, deve
ter fraturado, mas ela não foi ao hospital. Uma semana depois, bateu novamente
o mesmo dedo, a dor se intensificou e ela, outra vez, não procurou serviço
médico.
Passaram alguns
anos e quando está quente o menor dedo do pé direito da arquiteta não dói. Mas
desde a primeira fratura, o dedo — hoje talvez ainda fraturado — é capaz de
anunciar a chegada de uma frente fria e do inverno. A sinalização se faz por
meio de dor e, agora, Nina sente o desconforto, apesar do vento que entra pela
janela do carro e toca seu rosto — ela percebe que está em uma rua do São
Francisco e, no rádio, o Fábio Elias canta “Nunca mais”.
Em 2015, Nina
sentiu o início do inverno ao observar um fim da tarde pela janela de sua sala.
Uma chuva forte marcou a mudança de estação em 2016. Ano passado, ela caminhava
por uma rua do centro, o sinal para pedestres estava fechado e, ao esperar,
durante segundos, um vento gelado atingiu Nina, seu dedo e ela percebeu que o
frio estava para chegar. Este ano, já vieram as águas de janeiro, fevereiro e
março, o inverno ainda está oficialmente distante e, enfim, hoje o dedo do pé
direito da arquiteta dói, da mesma maneira e intensidade que doeu na véspera do
frio nos anos anteriores.
O Uber para
devido ao sinal vermelho. Pablo pergunta se Nina deseja que ele feche os vidros
e ligue o ar-condicionado, mas ela diz que não é necessário. Em uma parede,
está grafitado: “primeiro frio do ano/ fui feliz/ se não me engano”. Nina sorri
com o haicai do Paulo Leminski. Em uma estação de rádio, toca uma versão que
Luiz Melodia fez para “Leros, leros e boleros”, do Sérgio Sampaio: “Leros e
leros/ Traga branco o seu sorriso/ Em que rua/ Em que cidade/ Eu fui mais
feliz?”. O carro segue e, daqui a pouco, ela vai chegar a seu destino — o inverno
é logo ali.
Texto que escrevi a pedido da Revista VOi, publicado na edição 151, abril de 2018.
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