Mágica no absurdo

Gerson coloca a pílula na boca e engole a seco. Bebe café e, alguns minutos depois, tem a impressão de estar preparado para a reunião. A equipe da agência de propaganda vai apresentar a proposta de uma campanha sobre empoderamento feminino. A empresa de Gerson, ligada a frigoríficos e logística, não tem — em sua opinião — necessidade de investir na causa. Mas um distribuidor e outro acionista pediram apoio, e esses parceiros são fundamentais para o negócio.

Helô já apresenta a proposta quando Gerson, até então distraído, olha a publicitária e se dá conta de que todos os convidados para o encontro estão sala. “Eu tive que me empoderar para assumir o meu lugar no mundo”. De acordo com Helô, a frase deve ser dita por uma diretora de empresa e repetida por uma cantora, uma profissional de mídias sociais, uma terapeuta, uma enfermeira e uma advogada.

Gerson tem vontade de falar que a ideia é fraca. Ele acredita que empoderamento é consequência, principalmente, de estudo, repertório, cultura enfim. Mas, sua intuição sugere, não pega bem dizer o que está pensando. Além do quê, se criticasse a proposta da Helô, teria que apresentar outra sugestão. E, no momento, não tem uma alternativa para a campanha.

A publicitária explica em que canais de televisão o vídeo poderá ser exibido, possivelmente até em redes sociais. Gerson contratou a agência em que Helô trabalha não exatamente pelo fato de ela ser uma publicitária competente e premiada. Helô gesticula ao falar, sabe interromper o discurso para, em seguida, apresentar um exemplo comentado por ela mesma com piadas pertinentes, pausas e um gestual que tende a convencer o interlocutor. A publicitária sabe utilizar argumentos.

Mas, na realidade, o que Gerson admira nela é a beleza física.

— Linda.

— O que você falou?

— Linda.

— O quê?

— A campanha.

— Linda?

— Sim, Helô. Se puder, por favor, continue.

Helô explica qual linguagem pode ser usada no vídeo — na opinião dela, uma edição dialogando com o cinema de Woody Allen seria ideal. A publicitária diz que, além de outras profissionais, ela mesma poderia repetir aquela frase: “Eu tive que me empoderar para assumir o meu lugar no mundo”. Há silêncio, de alguns segundos, ninguém reage à proposta e Helô afirma que a campanha prevê desdobramentos, se possível, em material impresso.

Gerson observa o movimento dos lábios de Helô. Gostaria de beijar a publicitária. Não apenas a boca. O empresário tem uma ereção. Precisa de uma desculpa para dizer se for necessário levantar da cadeira.

Ele gostaria de se declarar para Helô. Mas, a intuição sugere outra vez, pode ser algo precipitado ou, mais precisamente, uma intervenção inapropriada, fora de tom e contexto. O silêncio pode ser, pelo menos momentaneamente, a solução, como ter silenciado já se revelou, para Gerson, sabedoria em reuniões nas quais estavam em debate temas como maioridade penal, casamento entre pessoas do mesmo sexo, eleição nos Estados Unidos, impeachment no Brasil, linchamento de criminosos, pena de morte, visitar Dubai e a qualidade dos produtos chineses.


Gerson não sabe se deseja Helô ou se o pau está duro por causa da necessidade de expelir urina do corpo. Há alguns minutos deixou de prestar atenção no discurso. Agora, ele percebe, Helô fala sobre o custo da campanha, prazos e questões técnicas, contato com uma produtora e seleção de elenco.

O empresário deixa uma das mãos em cima da coxa direita e, rapidamente, toca em seu próprio pau, duríssimo. Talvez a braguilha estoure. Durante os últimos trinta minutos, ingeriu seis ou sete pílulas. Já não sabe se usou, ou não, o Viagra que trouxe no bolso da camisa. Enfia a mão esquerda no bolso e tira o comprimido. O Viagra está lá. Coloca a pílula em um dos bolsos da calça. A necessidade de mijar é fato, mas aconteceu depois de ficar com o pau duro, não tem mais dúvida, excitado e com vontade de transar, imediatamente, com Helô.

Uma alternativa é esperar a publicitária dar uma pausa, pedir licença, levantar e ir ao banheiro. Mas Gerson teme que a movimentação se revele um desastre. A sua ausência iria interromper a reunião e a Helô poderia se incomodar.

O empresário está atento, ela fala com entusiasmo que não basta ser mulher. Sem feminismo, afirma Helô, não há política para mulheres. As leis, o discurso veiculado na televisão, as piadas repetidas em escritórios, as instituições, ela continua falando, são sexistas e machistas. A sociedade obedece a uma estrutura patriarcal e, a publicitária enfatiza, é necessário alterar isso.

Gerson já não sabe o que vai dizer para Helô, se é que vai falar com ela. Teme chegar e ser rechaçado. Vai que a mulher não gosta da atitude e reage dizendo que o empresário é um assediador? E se ela gravar o encontro e publicar o vídeo e o áudio nas redes sociais? Numa dessas, Helô posta uma mensagem no Facebook anunciando que o sujeito que a contratou para fazer uma campanha sobre empoderamento feminino não passa de um machista.

O tesão que sente por Helô quase substituiu outro desejo de Gerson. Quando recebeu a solicitação para fazer a campanha, o empresário analisou alguns fatores e investimentos, e só se convenceu, de fato, a apoiar o projeto levando em consideração uma possibilidade. Cogitou contratar uma das atrizes por quem sente atração. Não era nenhuma em especial, poderia ser uma parecida com a Jean Seberg, aquela que lembra a Jeanne Moreau ou talvez uma terceira, a atriz que — para ele — é quase um clone da Ingrid Bergman.

A ideia ainda não foi descartada. Gerson pretende apresentar a sugestão para Helô, se possível, na próxima pausa que ela fizer. Mas a publicitária segue falando e, neste instante, ressalta que atualmente ainda há mulheres dispostas a sacrificar projetos profissionais para colocar a família como prioridade. Não podemos mais, diz elevando o tom de voz, carregar a culpa de dividir nosso tempo entre o pessoal e o profissional. As outras mulheres presentes na sala aplaudem Helô, que, enfim, para de falar: ela está chorando.

Gerson já não tem mais controle e a urina escorre pelas suas pernas enquanto Helô chora. Rebeca, uma assistente, oferece um copo de água para a publicitária. O empresário caminha em direção ao banheiro, passa a mão na maçaneta, a porta está fechada, ele insiste, uma voz avisa que tem gente e Gerson sente mais urina escorrer pelas pernas. O celular dele começa a tocar, não um som convencional, mas uma canção de Lamartine Babo: “A... E... I... O... U... Dabliú, dabliú/ Na cartilha da Juju, Juju”.

Otto, secretário de Gerson, olha o empresário e pergunta se está tudo bem. Quatro ou cinco pessoas que vieram com Helô, incluindo um produtor chamado Bob, começam a rir. Otto também ri. O celular de Gerson continua tocando: “A Juju já sabe ler, a Juju sabe escrever/ Há dez anos na cartilha”. Jacques, um parceiro comercial de Gerson, também é contagiado pela gargalhada coletiva.

O empresário olha para as pernas e a calça, branca, está molhada com urina e não esconde a ereção. Gerson teme que até fora da sala estejam rindo dele, enquanto a canção do Lamartine Babo soa por meio do alto-falante do seu celular: “Sabe conta de somar, sabe até multiplicar/ Mas na divisão se enrasca/ Outro dia fez um feio/ Pois partindo um queijo ao meio/ Quis me dar somente a casca!”.

Gerson coloca a mão num dos bolsos da calça, pega uma pílula e a engole sem água. As pessoas que estão na sala olham para ele, a maioria está rindo e Helô ainda não parou de chorar. Por menos de um minuto, o celular do empresário fica em silêncio, mas quem deseja falar com ele insiste e o aparelho toca novamente a canção do Lalá: “Sabe história natural, sabe história universal/Mas não sabe geografia/ Pois com um cabo se atracando/ Na bacia navegando, foi pra Ásia e teve azia”.

As pessoas que estão na sala deixam de gargalhar. O celular de Gerson fica em silêncio e o som que se impõe é o choro de Helô. Em menos de um minuto, não ao mesmo tempo, mas em sequência, como se houvesse um roteiro a ser seguido, todos choram — até o empresário, ainda com ereção, chora.

E, por um tempo que ninguém contou, todos eles choraram, soluçando e abraçados.


Conto publicado em meu sétimo livro de contos, A certeza das coisas impossíveis (Tulipas Negras, 2018).

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