Desde agosto


Acordo e isso é o que de melhor pode acontecer. Fico em pé rapidamente. No banheiro, lavo o rosto e vou até a cozinha. Estou cansado, mas faço e bebo café. O corpo reage. Se pudesse, seguiria o tempo todo de olhos abertos.
Essa conta está certa, Salvador? Você conferiu direito? Tem certeza?
Viajei, a trabalho, para Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro e, em meio ao compromisso, passei em frente a uma lotérica e apostei nos números 11, 14, 18, 30, 33 e 39. Paguei R$ 2 pelo bilhete. Ganhei sozinho no concurso 1521 da Mega-Sena. R$ 25.313.774,00.
Salvador, está faltando dinheiro no balanço do primeiro trimestre. E agora? Eu te avisei pra conferir tudo com mais atenção.
Voltei pra Curitiba e não falei nada – pra ninguém. Aguentei calado no emprego até o fim do mês. Foram duas semanas que pareciam não passar. Todo dia tenso, pressão, erros que se repetiam, erros novos, erros contínuos. Não sei como sobrevivi. Mas, enfim, esperei pelo pagamento, saquei o salário no banco e pedi demissão.
Se fizerem uma varredura, Salvador, podemos entrar pelo cano. Entendeu?
O dinheiro da Mega rende por mês mais do que eu recebia por ano naquela empresa. Lá, o prejuízo era, aparentemente, mensal, apesar do enriquecimento dos proprietários. A minha tarefa era acertar a contabilidade. Eu precisava justificar uma entrada inexplicável de dinheiro e nunca consegui fazer o que esperavam que eu fizesse. Nem sei como não fui despedido. Levava broncas diárias. Até quê.
Salvador, acho que você esqueceu de registrar aquela operação. Se a receita nos pegar, daí sim, a tua, a nossa casa vai cair.

Meus R$ 25 milhões estão espalhados em cinco bancos. Se eu não cometer excessos, rende até para depois da morte. Viajei pra Europa, retornei e neste momento estou na América do Norte. Mas, mesmo em meio a essa nova vida, não consigo esquecer a rotina daquela empresa, sobretudo quando não estou acordado.

Salvador, Salvador. Acho que, agora, o bicho vai pegar.

Fecho os olhos e sonho com aquele trabalho. Acordo, olho ao redor, sei que aquilo não existe mais e, cansado, volto a dormir e a circular naquele cenário no qual toda ação que eu fazia, diziam, estava errada.

Você assinou muitos documentos, Salvador. Se nos pegarem, te pegam também, sabia?        

Estou fora do Facebook, evito acessar e-mail e zapear pela internet. Passo a maior parte do dia sentado dentro de um apartamento ou sigo de barco pela baía. Me questiono se realmente essa realidade não é sonho. Não preciso mais trabalhar e, quem diria?, tenho mais dinheiro do que meus ex-patrões.

Salvador, quem vai te salvar?

Estou exausto, preciso, mas não quero dormir. Evito fazer uma consulta e um médico me diagnosticar doente agora. Sou um milionário desde agosto e, mesmo e apesar do dinheiro, não quero empreender nem comprar nada. Os pesadelos, numa dessas, podem diminuir em breve.

– Despertarei desse estado de coma?


Ficção inédita publicada originalmente na página 65 da revista Ideias (Travessa dos Editores), edição 144, outubro de 2013.

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