Conduzidos por Minha Pequena Eva
Enzo
enxerga, enfim, Lara no desembarque do aeroporto, e ela parece, para ele,
outra. Aquela, ali, a poucos passos, não é a mesma das fotos postadas no Facebook.
Ou é? Ele se aproxima e tem a impressão de que ela entrou no hall, retornou
para o setor onde se retiram as malas e, novamente, voltou para, pela primeira
vez, encontrar com ele.
Eles
se cumprimentam com apertos de mãos e dois beijos, um em cada face do
rosto. Enzo se oferece para levar a mala de Lara, e os dois caminham
até o ponto de táxi do aeroporto. No trajeto até o táxi, ele faz comentários
sobre o clima, está mais quente do que eu esperava, pergunta se ela fez boa
viagem, Lara só balança a cabeça, afirmativamente e, então, ele faz sinal de
positivo com o dedo polegar para um taxista, que repete o sinal, e Enzo abre
uma das portas do Doblô para ela entrar.
O
carro segue, Enzo colocou a mala no banco da frente, ao lado do motorista, e
está sentado ao lado de Lara, no banco de trás. O taxista perguntou para onde?,
Lara olhou para Enzo, que perguntou para ela, você quer jantar? Lara balançou a
cabeça, afirmativamente, e Enzo disse para o motorista seguir em direção ao
centro, no caminho eles decidiriam onde seria a refeição.
Enzo
permanece em silêncio. Lara quase não falou desde que eles se encontraram. O
que está acontecendo?, Enzo se pergunta. Será que essa é a mesma Lara com quem
venho conversando há meses no Facebook? Trocamos mensagens quase todos os dias.
E agora? O que aconteceu?, ele segue a se perguntar.
Estou
desconfiado de que ela está com algum problema nos dentes, pensa Enzo. Vamos
numa churrascaria?, ele pergunta. Vamos, Lara responde. O senhor pode nos levar
até a Espeto na Chuleta? O taxista diz que sim. O teste da carne é infalível,
raciocina Enzo. Vou testar os dentes dela com carne em uma
churrascaria de terceira, ou quarta, qualidade, segue a refletir o
administrador de empresas.
Se
estivéssemos na minha cidade, levaria o Enzo para a beira do mar. Lara gostaria
de submetê-lo ao teste da praia. Acho que ele está fora de forma e, apenas de
sunga, não tem como esconder uma barriga que, se existir, vai me desanimar – a
frase se passa no imaginário da decoradora de interiores.
Lara
está cansada. Não teve sábado nem domingo nas últimas três semanas: finalizou a
reforma de um apartamento. Lara também está confusa. E não quer falar, pelo
menos agora, não pretende dizer nada, apenas olhar para Enzo e ouvir a voz
dele. Eles trocaram mensagens pela internet, ela viajou para conhecê-lo,
imaginou como seria esse encontro e, pela primeira vez ao lado de Enzo, quase
não fala e nem sorri.
Jonas,
o taxista, observa o casal. Por que ele ainda não chegou na moça? Jonas supõe
que, se fosse ele, já teria baixado nela. É bonita e tem um jeito de ser
chegada, mas o sujeito não chega. Assim o taxista pensa enquanto dirige o
carro, e não se conforma que o cliente fique quieto e deixe a moça desamparada.
Será
que esse cara é boiola? A pergunta surge para Jonas quando o Doblô passa em
frente a um motel. Se fosse eu, não levava a moça pra churrascaria nenhuma. Ia
direto pro abate.
Enzo está com vontade de falar algo
que faça Lara rir. E se eu perguntar se ela está a fim de um espeto em sua
chuleta? Ele pensa nessa pergunta e também em outra: gosta de linguiça? Sim?
Quer experimentar a minha? Ela poderia, raciocina Enzo, não dar risada, pedir
para voltar para o aeroporto e retornar pra casa.
O administrador de empresas queria
mesmo era ver o sorriso de Lara e os dentes dela.
Lara está, mesmo, com vontade de ver
Enzo sem roupa. Se ele tiver muitos pelos, pensa a decoradora de interiores,
não vai dar certo. E, de acordo com o que está supondo, se ele estiver com
sobrepeso, talvez o flerte virtual não tenha desdobramento na realidade.
Ela é uma pessoa que acredita que o
homem é aquilo que come. Devido à crença, começa a raciocinar que, se Enzo está
indo com ela a uma churrascaria, ele deve gostar e provavelmente consome carne
assada e, sem dúvida, gordurosa com frequência – o que faz do administrador de
empresas um sujeito detentor de potenciais índices de gordura acima da média e
que, se ele for sedentário, também é candidato a morrer vítima de enfarto ou
AVC.
Enzo só pensa em comer, carne e a
Lara.
Jonas percebe movimentação de
policiais na avenida que dá acesso à churrascaria Espeto na Chuleta. O taxista
para o carro, diz que tem uma blitz logo ali e pede aos passageiros para
descerem do táxi. Enzo pergunta por quê? Lara quer saber o que está
acontecendo. Jonas repete o pedido, por favor, desçam do táxi, não precisam
pagar a corrida e não esqueçam de levar a mala.
Enzo segue na calçada com a mala de
Lara em uma das mãos, ela está de cara fechada, ainda mais do que estava dentro
do táxi. Amanhã, ou no outro dia, depois de amanhã, os dois vão ler no jornal da
cidade a notícia do falso taxista que foi preso com carga de explosivos no
porta-malas. O nome não era Jonas, mas era o mesmo sujeito que os levou do
aeroporto até o centro. Ele se chamava Tony e no futuro será conhecido como
Minha Pequena Eva.
E nós dois dentro daquele carro,
hein?, comentará amanhã, perguntando, Enzo, espantado pelo fato de ele e Lara
terem vivido uma situação de risco real. Ela, com o sorriso que retornou ao
rosto ainda naquela primeira noite, dirá que tudo é acaso nesta vida, não é,
Enzo?
Ainda naquela primeira noite, depois
que o taxista os deixou na rua, eles caminharam por uma, duas, três quadras e
desistiram de ir até a churrascaria Espeto na Chuleta. Enzo e Lara enxergaram,
quase ao mesmo tempo, o letreiro luminoso do restaurante Todo Recheio.
Conhece esse?, perguntou Lara. Enzo
disse que não. Vamos experimentar?, ela sugeriu. Ele falou por que não? E os
dois entraram.
Todo Recheio oferece rodízio de
bolachas recheadas. Por R$ 19,90, cada cliente tem direito a comer pelo tempo que
quiser, e conseguir, as 32 opções. Há bolachas com recheio de morango, limão,
chocolate, leite condensado, goiaba, requeijão, queijo cheddar, rabanete, entre
outras possibilidades.
Logo
que o casal se acomodou nas cadeiras em uma mesa, um de frente para o outro,
Lara riu pela primeira vez desde que chegou na cidade onde Enzo mora. O que
foi?, ele perguntou. Nada, ela respondeu, olhando mais uma vez para uma das
mesas, no máximo dez metros distante de onde os dois estavam.
A
decoradora de interiores ria do Vinícius Queiróz Torres. O engenheiro,
conhecido em quase todo o país, pedia três, quatro unidades de cada sabor e
enfiava uma ou duas dentro da boca ao mesmo tempo. Em cima da mesa, uma garrafa
de 3 litros de Coca-Cola.
Enzo nem sabe que existe um sujeito
chamado Vinícius Queiróz Torres e que é por causa dele, Vinícius Queiróz Torres,
que Lara está rindo. O administrador de empresas também começa a rir,
principalmente, toda vez que um garçom oferece uma bolacha recheada, sabor
morango, aceita?
Lara mastiga bolachas recheadas
olhando para Enzo e para o Vinícius Queiróz Torres. Ela não o conhece
pessoalmente, mas leu num jornal que o vizinho de mesa no restaurante já foi
processado por copiar projetos de outros engenheiros e, devido ao uso ilegal do
trabalho alheio, pagou mais R$ 960 mil.
Enzo e Lara pedem a conta, ele paga,
carrega a mala dela e os dois caminham em direção à rua enquanto Vinícius Queiróz
Torres segue a comer duas ou três bolachas recheadas ao mesmo tempo.
Lara e Enzo se tornaram namorados e
viveram juntos por alguns anos. O que aconteceu com eles, depois, não é
interessante e será omitido deste enredo. Vinícius Queiróz Torres se tornou
unanimidade e é considerado gênio, apesar de apenas copiar, com mínimas
alterações, obras de profissionais de outros países, as quais críticos e
especialistas locais não têm acesso. Jonas, ou melhor, Tony passou sete anos
preso e, nesse período, começou a escrever e a declamar poesia. Se alguém diz
oi, ele responde, no instante, boi. Ao som da palavra laringe, Tony reage com
esfinge. Recentemente, conseguiu sair do presídio, onde recebeu o apelido de
Minha Pequena Eva. Criou e mantém um blog e anuncia que vai publicar um livro.
Por enquanto, apenas fala mal de quem escreve e publica obras literárias.
Era isso.
Ficção inédita publicada originalmente nas páginas 20 e 21 da edição de setembro de 2013 do jornal RelevO.
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