Só no 603


         Walter abre os olhos, pula da cama. São três e vinte e sete. Ele pergunta por que essa mulher insiste em caminhar de salto alto? A esposa, Aline, espera alguns segundos e comenta, amor, não escutei nada.
         Escute, Aline. Escutou? Só ouço a sua voz, meu amor. Ei, Aline, preste atenção: a vizinha está batucando com os saltos, e acho que é provocação.
         Ele segue do quarto até a cozinha, pega o interfone, digita o número da portaria, diz oi, quem fala?, ah, tudo bom?, sim, aqui é o Walter, isso, isso mesmo, o do 603, é, quero fazer uma reclamação, não, não pode, agora, é que a vizinha, não, a do 703, é, isso, não, não, prefiro as morenas, não, é que ela não para de caminhar, isso, ela está fazendo barulho, o quê?, não, deve ser engano, tenho, certeza, claro que escutei, o quê?, você está brincando, o quê, ora, vá, vá trabalhar.
         Que foi, amor? Aline, o porteiro disse que a vizinha do 703 viajou. Eu não disse? O quê?, Aline, até você? Mas. Tive que xingar o sujeito. Walter, vem cá, esquece esse barulho. Esquecer?
         Vamos dormir, Walter. Eu levo a sério, Aline, é o meu direito de descansar. Eu sei, meu amor. Aquiles caminhou rumo à própria morte.
         O quê?
         É poesia, Aline, poesia. Mas a essa hora? E precisa marcar hora pra poesia? Vem cá, Walter. Por Agammêmnon, por Heitor, por Aquiles, vou à luta, contra tudo e, se for o caso, contra todos.
         Walter caminha pelo quarto enquanto Aline pede para ele deitar. Após citar Zeus, Ajax e outras personagens da mitologia grega durante trinta minutos, de um instante para outro, cede aos pedidos de Aline.
         Ei, escutou isso? O quê, amor? Essa voz. Qual? A que diz que eu sou um equivocado. Quem falou isso, Walter? Não sei. Você está passando bem, querido?
         Walter sai da cama.
         Ele segue, a correr, até a sala. Aline levanta e vai atrás do marido.
         Escuta, escuta, está ouvindo? O quê, meu amor? É o vizinho do 503. O quê? Ele ligou, escute, a furadeira. Furadeira? Não, acho que não é isso. O que está acontecendo? Já sei, ele está usando um martelo. Walter, eu não estou ouvindo nada. Nada? Meu amor, acho que você está cansado, muito cansado.
         E agora, Aline. Agora? É aquele sujeito do 602. O que ele fez? Está com alguma máquina ligada. Não ouço nenhum ruído, Walter.
         Já sei. Já sabe o quê, Walter? Você ainda não percebeu? Do que você está falando? Do fim do mundo. Fim do mundo? E o que mais poderia ser? Francamente, Walter, eu estava pensando que você está cansado, mas a situação é bem mais grave. É lógico que a situação é grave, Aline, estamos em dezembro de 2012. E o que que tem? O mundo acaba até o fim do mês.
         Ele tira a camiseta, a bermuda e a cueca. Aline olha, e começa a gritar. Ela vai até a cozinha, abre a porta, sai correndo pelo corredor vestindo camisola e desaparece na escada que dá acesso ao térreo. Walter está na sala, pelado, com desenhos no corpo feitos com caneta: várias bicicletas, imagens de selins, a frase sou cicloativista e liberal ativo, e um texto sobre as ruínas de Troia, na opinião dele, um espelho daquilo que dizem ser a sua, a nossa, a civilização do mundo contemporâneo.


Ficção publicada originalmente na revista Ideias, da Travessa dos Editores, dezembro de 2012.

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