Olinda Giant Puppet


            Um conflito napoleônico está abaixo do meu nariz, e um tal de Del Dongo luta, mas a batalha é para seduzir uma senhora. Poucos centímetros e há outro conflito que segue viagem ao fim da noite, onde há tiros, inclusive tiroteiro verbal, e nenhuma esperança.
            Fecho as duas janelas, e sigo por outros trilhos, de um narrador fã de uma mulher, ele deseja ser ela, é homem querendo ser mulher. Também é guerra, confronto com o destino, que fez ele, que queria e quer ser ela.
            Pou, pou, pou, pou, escuto o som, mas não tiro os olhos das linhas de outra narrativa que também é guerra, a busca pela sonoridade sublime, a frase que se quer sem retoques da primeira à página 132.
            Um vizinho de poltrona diz, olhe só, tem uma mulher, ali, na calçada. Meus olhos ainda estão presos a páginas de um contínuo fluxo poético. Outro passageiro fala, ei, acho que atiraram naquela mulher, aquela ali, ó.
            — Há uma mulher na calçada, mas não vejo sangue.
            — Nem levaram a bolsa, diz alguém dentro do ônibus.
            — Mas aquele homem tentou arrancar a bolsa, eu vi, comenta outro passageiro.
            — Que homem?
            — Será que foi encomenda?, pergunto.
            — Por quê?
            O ônibus está parado. Pessoas param para ver aquela mulher, caída, uma outra mulher, em pé, disca em seu telefone celular, talvez para a polícia, para o socorro ou para uma equipe de reportagem.
            Em uma rua perpendicular, um homem, de mais de um metro e noventa centímetros, não, talvez mais de dois metros, segue. Ele corre, os braços estão esticados para baixo, não parece haver flexibilidade nos movimentos.
            — É ele?
            — Olinda Giant Puppet.
            — Olhe só, acho que foi ele.
            — Olinda Giant Puppet?
            As lâmpadas dos postes, dos bares e dos apartamentos estão acesas, são 18h39. O ônibus segue e os passageiros ficam em silêncio. Volto aos livros, dez minutos em um, quase meia hora no outro, meus olhos vão pelas linhas, e não deixo de perguntar o que aconteceu, se a mulher está viva, o que motivou o sujeito a atirar nela. Uma voz diz, ei, se no início da noite está assim, pou, pou, pou, pou, imagine de madrugada.
            Fecho os olhos.
            Meus um metro e oitenta e dois centímetros não descansam na poltrona desse ônibus leito e em nenhum outro veículo em movimento. Uma curva, o som de buzina, uma freada, a redução da velocidade ao passar em um posto de pedágio, e acordo.
            Fecho outra vez os olhos, mas não durmo. Os livros estão dentro de uma bolsa, no chão. Não consigo descansar aqui, e aperto o botão no painel acima do banco onde estou. Uma lâmpada do tamanho de uma moeda de um real se acende. Passo por uma, duas, três, nem lembro quantas páginas e não estou no enredo – li a pensar na cena que aconteceu há cem ou mais quilômetros, do lado de fora do ônibus.
            — Olinda Giant Puppet.
            A viagem vai consumir mais sete horas, e somente amanhã saberei, pela reportagem policial, que não apenas uma, mas duas mulheres foram baleadas por um sujeito que, ao ser preso, portava um revólver calibre trinta e oito usado para os disparos, com quatro munições deflagradas e uma quinta, que falhou.
            — Olinda Giant Puppet.
            Se o crime foi encomendado, por um ex-marido de uma das vítimas, não sei, é palpite. O assunto não terá desdobramento nos jornais. Li, ou sonhei?, que o autor dos quatro tiros, que feriram duas mulheres, era namorado e foi traído por uma delas?
   Olinda Giant Puppet?
            Entrei e saí de cenários inéditos e inesperados, contracenei com personagens nonsense, acasos me abduziram e não esqueci a cena: aquele homem de um metro e noventa centímetros que corria com os braços esticados para baixo, sem flexibilidade, quase sem dobrar pernas após pou, pou, pou, pou, ter disparado quatro tiros que pensei serem rojões de agosto, uma micareta e o siricutico de um bonecão de Olinda.

Ficção publicada na revista Ideias, agosto de 2012. A ilustração é do Marciel Conrado.

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