Promoção

O Gonçalves me leva até onde preciso entregar documentos. É a minha primeira semana no emprego, uma canção de uma banda inglesa toca no rádio e não trocamos palavras.
Passamos em frente a uma capela funerária, há coroas, pessoas, um caixão, e o Gonçalves diz:
– Esse foi promovido.
Os colegas evitam o Gonçalves, não posso fazer o mesmo: dependo dele para levar e trazer papeis, entregar, retirar e transportar encomendas.
Entro no automóvel, ele pergunta se conheço o França, sujeito da cidade que ganhou sozinho na Mega-Sena, digo que sim, ele ri, e comenta:
– Foi promovido.
O fato de eu demonstrar eficiência ao realizar tarefas e, mais que tudo, me relacionar sem atrito com os colaboradores, incluindo o Gonçalves, viabilizou minha ascensão na empresa. Mudei de cargo, o salário se multiplicou. Não divulguei essas informações, nem foi necessário. O meu figurino mais sofisticado do que quando fui admitido e a minha presença ao lado dos diretores devem ter chamado a atenção. O Gonçalves fez um comentário:
– Será que você ganhou uma promoção? Ainda não, mas acho que.
Durante os trajetos para levar e buscar documentos ou assinaturas, o Gonçalves seguia, na maior parte do tempo, em silêncio e com o rádio ligado a ouvir notícias. Se o locutor anunciava a morte de alguma personalidade, ele sorria, olhava pra mim, e gritava:
– Mais um que foi promovido.
O começo da semana anima o Gonçalves. Ele chega na empresa antes das sete e já sabe o número de óbitos e as manchetes dos jornais que vendem homicídio, acidentes de trânsito, furtos e roubos. Sorri, e diz:
– Teve muita promoção sábado e domingo.
O Gonçalves dirige o automóvel, olha pra mim, e pergunta:
– Quando vai sair a sua promoção?
Gargalha. Vamos em silêncio por cinco, seis, sete quadras, e ele fala:
– Eu sou o Gonçalaço, o rei dos palhaços.
Sigo a conviver com o Gonçalves por alguns anos, até que surge uma oportunidade, um salário melhor, e deixo a empresa.
Emagreci, surgiram fio brancos, casei, descasei, casei outra vez, recuperei quilos, quase os mesmos que eu tinha no período em que convivia com o Gonçalves. O acaso ou, com mais precisão, uma necessidade profissional fez com que eu voltasse até aquela empresa. Antes de me despedir, contei ao funcionário com que fiz a transação, o Michel, que há mais de uma década eu trabalhei ali.
– E, o Gonçalves?
Saí daquela empresa e não lembro para onde fui em seguida. O Michel me contou que o Gonçalves morreu há dois meses, imediatamente após se aposentar.
– Foi, enfim, promovido.
Lembro de uma única vez em que o Gonçalves contou algo a respeito de si, eu perguntei desde quando ele estava na empresa, naquele instante estávamos em frente a uma loja, ele pediu para eu pronunciar o nome, Gonçalves Móveis, é da minha família, ele disse, você é sócio?, briguei foi a resposta.
Durante uma festa de fim de ano daquela empresa, um colega, o Adilson, comentou que o Gonçalves enfrentava dificuldades financeiras, não tinha amigos e era doente.
– O Gonçalves é obcecado pela morte por que não tem vida.
A tese do Adilson pode ter alguma coerência, mas, pra mim, não dá conta de explicar o Gonçalves e a sua obsessão.
Por que lembrei disso? Estou sozinho em casa, bebo um café, e tive a impressão de escutar aquela gargalhada que surgia após o Gonçalves dizer:
– Um dia todos recebem a sua promoção.

Ficção publicada na edição julho-2012 da revista Ideias, com ilustração de Marciel Conrado.

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