Ai ai de mim

Quem me vê assim, torto, a mancar, careta pra cá, cenho franzido pra lá, talvez duvide que experimentei saúde, se não plena, parcial, quase pra dar e vender. Agora, ai de mim, tudo é uma África. Mais fácil transformar petit-pavé em ouro do que, por exemplo, enfrentar míseros degraus. E olhe que há não muito tempo eu voava de três em três, a correr escada abaixo ou acima.

O tique-taque do meu cotidiano seguia, e o meu rosto levava por travessas, pontes e esquinas um sorriso quase permanente, apesar de águas azedas ingeridas sem querer e caneladas que recebia em tardes de neblina. Até que cismei, e a palavra, o verbo é esse, cismei que precisava de um novo par de sapatos, apesar de dúzias de pares recém-adquiridos que despencavam de uma gaveta dos guarda-roupas.

Era uma quinta-feira, 19h43, quando entrei em um shopping. Meus passos poderiam sugerir que ali estava um homem decidido, o que era no máximo meia-verdade. Eu queria comprar um novo par de sapatos e, como já se tornou hábito, fui direto até a loja na qual sou cliente. Saí sem sacola nas mãos e sem gostar de nenhum modelo. Passei em frente a vitrines de outras duas, três, quatro empresas que comercializam calçados, e nada. Estava em falta ou ainda por ser fabricado o sapato que se encaixaria em meus pés ou que me seduziria no primeiro olhar. Mas insisti e entrei em uma loja que ainda não conhecia até aquele momento.

Não gostei de nenhuma opção, mas estava começando a me cansar e, para dissolver um impulso que eu não sabia a origem, escolhi um par de sapatos preto, de bico quase quadrado, número quarenta e dois. A vendedora foi buscar o produto no depósito e, durante aqueles cinco, seis, sete minutos, me despedi dos sapatos que estavam em meus pés. Tenho a mania: ao comprar sapatos novos, deixo na loja os que me levaram até ali.

Segui até um restaurante no qual haveria comemoração por algum projeto bem-sucedido, não lembro ao certo o motivo daquele celebrar, e durante a festa, um copo de vinho, outro chope, esqueci que demorei uns seis, sete minutos para conseguir colocar os novos sapatos em meus pés.

O dia seguinte, a sexta-feira, foi uma mancação só. Isso. Segui a mancar com os pés comprimidos dentro daqueles sapatos novos. Nas primeiras horas, queria acreditar que é assim mesmo, o produto novo tende a provocar desconforto. Me perguntavam se eu havia machucado os pés, e eu a disfarçar, a negar, a tergiversar.

À noite, já em casa, senti alívio, de gemer. Ao descalçar meus pés, nem reparei em eventuais lesões, também não pensei em nada por estar exausto, e adormeci sem me cobrir e sem fechar as janelas.

Acordei molhado na madrugada, a sentir febre e todo dolorido. Dor nas costas, dor no couro cabeludo, dor no ombro, dor de dentes, dor no pescoço, dor nas pernas, dor para, vou parar por aqui.

Desde aquele sábado até agora, tudo se transformou. Dói para dormir, dói para acordar, dói, inclusive, para digitar esse texto. E tudo por que me submeti a uma espécie de acupuntura alternativa desgovernada e sem agulhas, doze horas de pressão contínua nos pés, o que deve ter acionado, ou sabotado?, pontos vitais, e o meu organismo se desregulou.

Se já procurei ajuda? Do científico ao sobrenatural, tentei quase tudo. Me tornei, inclusive, conhecido entre os taxistas. Ao solicitar um carro, por telefone, digo o meu endereço, e todos sabem onde é. “No prédio do tortinho, que manca e reclama que tudo dói?”, perguntam. Digo que sim, fazer o quê? Me transformei nisso, “o tortinho, que manca e reclama que tudo dói”, veja só, devido ao mau passo que dei ao adquirir aquele produto enfeitiçado, apertado ou simplesmente por que – ai ai de mim – tinha de ser. 

Crônica publicada na página 40 da edição de dezembro de 2011 da revista Ideias, publicação mensal da Travessa dos Editores. 

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