O legado tropicalista de Wilson Bueno



Wilson Bueno  tropicalizou Curitiba, o Paraná, o Brasil. Mais do que apenas um escritor, e ele foi – e é – um dos nomes de destaque da ficção contemporânea, esse sujeito irrequieto soube, como poucos, dialogar com autores e culturas variadas e ainda desenvolver uma linguagem radical.

“O que me consola é que não guardo esperanças com relação a tudo o que vai aqui registrado. Já o disse em algum logar, e o digo de novo, e senão o disse, digo-o pela primeira vez – assim que me enfade o passatempo chinfrim, pico isto tudo em pedacinhos e o fragmento do fragmento jamais dirá o que foram as partes e muito menos ainda o todo.”

O trecho, transcrito no parágrafo acima, está na página 21 de Amar-te a ti nem sei se com carícias (Planeta, 2004), obra na qual Bueno recria a dicção de Machado de Assis. O escritor paranaense conhecia a tradição. Poderia, como demonstrou em diversas oportunidades, reproduzir outras vozes marcantes do universo literário. De Machado a Guimarães Rosa, de Lewis Carroll a Franz Kafka: Bueno bebeu em muitas fontes, mas nunca se contentou em andar por caminhos percorridos anteriormente.

“Nessa história de preguiçosos, o mais interessante não são os preguiçosos, mormente do sexo masculino, mas uma preguiçosa ou para ser mais exato – uma deusa preguiçosa.” O fragmento foi retirado de A Copista de Kafka (Planeta, 2007), obra que pode ser lida como um livro de contos, uma novela ou até como um romance. Essa fluidez ou drible nos limites e definições dos gêneros literários é um dos pontos centrais da produção artística de Bueno. Entre a direita e a esquerda, ele optou pela terceira margem do rio. Ou, para ser mais claro, Bueno não queria explicar, e sim confundir.

Na realidade, o autor de Bolero´s Bar (Travessa dos Editores, 2007) queria mesmo era seduzir. Ele até flertou, mesmo que minimamente, com o discurso linear, mas a sua bossa era no desvio, no ziguezague, na curva e no aparente nonsense – aparente porque Bueno, mesmo com personagens animalescos, entre outros recursos inventivos, tratava desse assombro permanente que é a realidade.

O projeto literário de Bueno pode ser definido a partir do título de um livro de Roland Barthes: O prazer do texto. Isso mesmo. O ficcionista de Jaguapitã que se radicou em Curitiba buscava o som ainda não dito, mesmo que fosse para dizer o mais do mesmo. “Voar será sempre um exagero de predestinação, um acessório supérfluo, um luxo, e a notável convicção de que aí more – de vez – a poesia.” Ouviu? Escutou o canto de Bueno? Prosa mais do que refinada? Ou a mágica da poesia?

De desbunde em desbunde, Bueno caetaneou. O tropicalista paranaense soube colocar em prática o texto odara que Caetano Veloso canta em “O Quereres”: “Onde queres o ato, eu sou o espírito/ E onde queres ternura, eu sou tesão/ Onde queres o livre, decassílabo/ E onde buscas o anjo, sou mulher/ Onde queres prazer, sou o que dói/ E onde queres tortura, mansidão/ Onde queres um lar, revolução/ E onde queres bandido, sou herói.”

Quando o mundo exigia a linha reta, ele se assumia barroco. Se o obrigatório era o horário comercial, Bueno dormia para acordar diante do por do sol e, pela noite e madrugada acesa, tecer a ficção que, vista agora um ano depois de seu desaparecimento, evidencia uma profissão-de-fé segundo a qual a beleza, e somente ela, pode salvar o mundo.

Texto publicado na edição 116 da Revista Ideias, da Travessa dos Editores, já nas bancas. A foto, de divulgação, é de Walter Craveiro.

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