Penélope
Hoje
Penélope está na noite e a noite, aquele poeta já definiu, é outro país. Devora
mais de um parceiro ou parceira por saída. Ontem transou com Eurímaco e Antínoo
ao mesmo tempo. Agora
está
interessada em Menelau, Páris e Helena. Se rolar, pode ser a quatro ou até
mesmo com um de cada vez. Bebe o último gole de champanhe misturada com
melancia e gengibre e, já faz alguns minutos, percebe um tal de Fêmio dando mole
– de repente, pode até se aliviar com esse. Olha o relógio, são quase vinte
três horas e dez minutos, daqui a pouco é amanhã e não vai esperar.
Penélope
esperou demais. Durante oito anos, passava oito horas sentada em uma cadeira
olhando o relógio. O fim do expediente demorava pra chegar. Aquele período
quase zerou seu tesão, praticamente esmagou qualquer iniciativa, não havia mais
desafio, só atos mecânicos, repetitivos. Carimbar, assinar, buscar assinaturas,
conferir dados e telefonar pra dizer que tinha carimbado, assinado e conferido
sabe-se lá o quê.
Nenhum
Ulisses apareceu durante aqueles oito anos, e Penélope esperou tanto por um,
qualquer Ulisses. Mais até do que cansada, estava conformada com a situação,
quando um conhecido, o Euro, sugeriu a ela a alectoromancia. A primeira reação
de Penélope foi rir e rejeitar que um galo adivinhasse seu futuro. Mas quando a
ave comeu grãos de milho colocados sobre letras formando palavras, ela chorou e
sentiu que aquela prática antiga poderia não ser brincadeira.
–
Penélope deve mudar de vida para não morrer.
Ela
pediu ao Euro para levá-la outra vez ao centro de alectoromancia. Penélope se
arrepiou quando o galo comendo grãos de milho colocados sobre letras formou a
seguinte frase: você precisa matar quem era para continuar vivendo. Penélope
insistiu e Euro a levou uma terceira vez ao terreno de chão batido coberto com
telhas de alumínio onde aquela mesma ave fez ela ler a sentença: o que você era
até aqui já não representa o que você será.
Penélope
retornou outras vezes ao local e leu mais frases formadas por aquele galo,
todas sugerindo que ela deveria mudar de atitude. Em uma das idas ao centro de
alectoromancia, ou voltando de lá, transou com Euro. Eles transaram por
semanas, período em que ela pediu demissão, cortou o cabelo, doou praticamente
tudo o que acumulava no guarda-roupa e vendeu o apartamento.
As
calças coloridas, jaquetas de couro e o vermelho no cabelo de Penélope não
passaram despercebidos, no caso, por quem a conheceu anteriormente. Além do
novo visual que exibe em bares, boates, teatros e shows, Euricleia reparou que
Penélope se tornou fumante. Pisístrato comentou com Trasimedes que, mais ainda
do que a repaginação visual, o que chama atenção é a postura da amiga,
principalmente os ombros – não mais caídos como foram por muito tempo.
Penélope
transa e, mais até que isso dizem, devora homens. A luxúria e o comportamento
promíscuo não colaram nela um rótulo, como acontecia com mulheres há não muitos
anos, de vadia, galinha, piranha, puta ou vaca. Penélope também é conhecida e
chamada de Rubra, e se trata de um apelido, no mínimo, carinhoso. Homens sonham
conhecer os pentelhos ruivos da mulher que ao som de qualquer música movimenta o
corpo sensual e irresistivelmente.
Apolo,
Aquiles, Egisto, Hades, Hermes, Mentor e Radamanto dizem que, melhor até do que
transar com Penélope, é olhar, beijar e tocar os seus pentelhos. Alguns
brocham, mas, apesar do incidente, não deixam de apreciar os pelos da desejada
e insaciável mulher noturna. Ela, de fato, desaparece durante o dia. Ninguém
sabe onde mora, o que faz para pagar boletos, se pratica exercícios físicos ou
faz dieta para manter o corpo que processa destilados durante noites e madrugadas.
A pele
de Penélope atrai mulheres. Anfitrite, Artêmis, Atenas, Deméter e três Erínias
gostam de olhar, beijar e tocar, mais até que os pentelhos, a pele da Rubra.
Hera é apaixonada por Penélope. Elas transam, mas Hera diz para Penélope que,
mais do que o contato corporal, prefere contemplar sua pele. Hera já comentou
com Anfitrite, Artêmis, Atenas, Deméter e com as três Erínias que é o luar que
deixa a pele de Penélope tão agradável. Anfitrite e Artêmis discordam. Para
elas, é a alimentação somada à genética o que torna especial a pele da Rubra.
Atenas prefere não comentar, enquanto Deméter e as três Erínias acreditam que a
pele de Penélope é tão atraente devido a sua intensa atividade sexual.
Penélope
caminha em uma avenida, são exatamente duas horas e dezoito minutos. Quinta-feira.
Há uma hora, transou com o Fêmio. Já não sente as tensões que, desde o final da
tarde anterior, a incomodavam. A bateria do celular acabou, por isso não
conseguiu chamar um Uber. Desde que saiu do apartamento do Fêmio, não encontrou
nenhuma pessoa na rua. Se alguém a incomodar, tem uma pistola na mochila. Mas,
se for abordada, não pretende desperdiçar munição. Atira apenas se não houver
alternativa.
Penélope
também leva dentro da mochila um soco inglês, uma lata com spray de pimenta e
um par de algemas. Alguns parceiros gostam de transar algemados, ela não.
Sentia-se presa quando trabalhava. Numa tarde, teve a sensação de estar
algemada, por não agir sem autorização ou avisar que iria ou pretendia realizar
algo. Desde que modificou sua vida, Penélope não sente vontade de usar algemas,
nem relógio ou celular.
Neste
momento, não sabe que horas são e não deseja nada. Não quer falar nem transar
com ninguém, está sem sono ou fome, não quer beber, fumar não faz falta e não
tem planos para o futuro, seja amanhã ou os próximos passos na rua onde anda.
Vê
luzes no horizonte, que podem ser relâmpagos ou fogos de artifício. Segundos depois,
escuta sons sem saber se são rajadas de metralhadora ou o barulho de rojões que
alguém usa para saudar um ano novo, outra festa, prosperidade conquistada,
porvir ou perdida.
Conto
publicado em A certeza das coisas
impossíveis (Tulipas Negras, 2018), o meu sétimo livro de narrativas.
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